18.6.12

A SABEDORIA DAS MULHERES - DEUSAS E AS ARTES DA CIVILIZAÇÃO




Observações sobre o Capítulo 4, escrito pela Professora Dra. Tikva Frymer-Kensky em seu livro de 1992, In the Wake of Goddesses: Women, Culture and Transformation of Pagan Myth. Fawcet-Columbine, New York.


Uma das grandes (re-)descobertas do estudo da Religião Mesopotâmica constitui, sem dúvida alguma, a recuperação da imagem do Divino Feminino. O primeiro parágrafo da Professora Frymer-Kensky, em seu Capítulo 4, portanto começa com uma questão fundamental. Em que sentido a presença de deusas e deuses no antigo panteão sumério de divindades têm importância para a sociedade como um todo? Basicamente, a presença de deusas e deuses no antigo panteão sumério trazia as duas imagens do divino para a sociedade (grifo meu) , significando, portanto, que o cosmo era compartilhado por poderes femininos e masculinos, cada um com seu impacto sobre eventos e processos. Cada aspecto do pensamento filosófico-religioso sumério partia desta premissa cosmológica fundamental, e a cultura, a natureza e a sociedade eram todas percebidas em termos de diferenciação de gênero. A divisão macho-fêmea do Reino Animal (e dos Humanos) era projetada na esfera cósmica e permeava a reflexão filosófica. Como resultado, gênero era um aspecto imediato e do qual não se podia escapar no pensamento sumério.

A importância desta premissa para a sociedade tem implicações imensas. Quando os sumérios refletiam sobre os eventos, instituições e atividades que constituíam a civilização, eles imaginavam deuses e deusas buscando as mesmas atividades culturais que eles mesmos sumérios, bem como acreditavam que os deuses haviam dado o conhecimento destas áreas culturais para a humanidade. Desta forma, tanto deuses quanto deusas eram patronos da cultura; forças tanto femininas quanto masculinas estavam envolvidas com a criação da civilização. A distribuição das atividades culturais entre as divindades estavam de acordo com as expectativas da sociedade com relação ao comportamento de homens e mulheres. Certas atividades, como ser rei e a administração da lei estavam associadas aos deuses. Outras atividades consideradas mais femininas pela cultura, tinham deusas como suas padroeiras ou protetoras.

Desta forma, as deusas eram responsáveis por três atividades que os Mesopotâmicos consideravam básicas para uma vida civilizada: a confecção e uso de roupas, a alimentação baseada em cereais e a manufatura da cerveja. Uma composição suméria chamada Lahar e Ashnan, ou Ovelha e Grão, conta como os deuses deram estes dois elementos culturais essenciais aos humanos. O Épico de Gilgamesh também mostra o quão fundamental os alimentos, a cerveja e vestimentas o eram para a definição Mesopotâmica de humanidade, civilização e cultura. Neste épico, vestir roupas e beber cerveja foram habilidades que o recém-nascido Enkidu tem de dominar antes de se juntar à sociedade humana. Quando Enkidu primeiro vem ao mundo, ele é um ser primitivo, sem cultura e identificado com os animais. A distância entre ele e a humanidade é expressa da seguinte forma: "Ele se vestia de peles, ele se alimenta de grama como as gazelas,... com os animais em bando ele, seu coração se diverte na água". O humano Enkidu identificado com a natureza selvagem então protege os animais destruindo armadilhas que os caçadores faziam para suas presas. Porque Enkidu desta maneira ameaça a vida dos sumérios, um plano então é concebido para socializar Enkidu, trazendo-o para o mundo dos civilizado. Os sumérios então levam até Enkidu uma cortesã, confiando que a atração dele por els poderia trazê-lo para o mundo dos humanos. Ela se mostra para ele. Enkidu, deveras atraído, une-se a ela por seis noites e sete dias. Finalmente saciado, ele tenta retornar para seus animais. Mas três fatores intervém. Os animais agora fogem dele, pois Enkidu agora tem o cheiro de seres humanos. Enkidu tenta correr atrás dos animais, mas ele não consegue correr tanto quanto antes. E terceiro, seus olhos se abriram, e ele entende o que lhe aconteceu, dá-se conta de que ele pertence ao mundo dos homens e mulheres. Então, ele retorna à cortesã, que começa a dar a ele suas primeiras lições sobre civilização. Ela divide com ele suas roupas, ensina-lhe a comer, leva-o até os pastores, ensina-lhe a beber cerveja. Depois de tudo isto, Enkidu está pronto para realizar seu destino e razão pela qual foi criado, indo então à cidade para encontrar Gilgamesh.

A produção destes rudimentos da civilização é o domínio das deusas. Nisaba protege o crescimento dos cereais, cujo símbolo pictográfico é o grão divino. Lã, representada pela ovelha Divina, transforma-se em tecido através da deusa Uttu, que também é o arquétipo da esposa. Fazer cerveja está nas mãos da deusa Nikasi, cujos implementos para tal tarefa são feitos de lapis lazuli e ouro. A arte de fazer cerâmica - menos elementar, mas ainda assim fundamental para a civilização - estava também nas mãos da deusa Ninurra. Como a esposa do deus Shara, o deus da cidade de Umma, ela é conhecida em textos a partir deste período (Período Dinástico Anterior) como a mãe de Umma. Entretanto, à medida com que o tempo passa, Ninurra transforma-se num deus e finalmente é absorvida na figura de Enki-Ea.

Além da produção, a provisão de bens básicos exige que o excesso seja armazenado para ser colocado à disposição de todos. Aqui também as deusas controlam esta tarefa. A deusa Nisaba, a deusa da vegetação mais estreitamente associada com grãos, também é conhecida por arrumar os galpões de armazenagem de grãos, bem como é identificada com a sala de armazenagem. A área do templo chamada de giparu, a área para armazenagem de alimentos, também servia como ala onde morava a Alta Sacerdotisa ou Alto Sacerdote da cidade. A associação de deusas com armazenagem é uma reflexão do papel social das mulheres na preservação e conservação dos produtos da casa. Depois do famoso, mas não exatamente positivo, artigo de Erikson sobre o "espaço interior", têm-se discutido se a biologia feminina predispõem as mulheres a "preencher" estes espaços. Seja quais forem as verdades psico-biológicas deste tema, em termos sociológicos é claro que têm cabido às mulheres a guarda dos alimetnos e de objetos valiosos. Na Suméria, o papel das mulheres na armazenagem era reconhecido e tem sua marca no idioma Sumério. A palavra ama5, que significa armazém, também quer dizer os aposentos da mulher da casa. De forma bastante clara, cereais e outros produtos eram em geral armazenados nos aposentos das mulheres, e as mulheres administravam e eram as guardiãs destes bens armazenados. O termo ama5 é também usado para os aposentos da deusa ou das sacerdotisas da deusa, bem como para arranjos domésticos. Mas quando a mulher era uma deusa, os aposentos para armazenagem eram a área de armazenagem do templo, portanto estendendo-se como depositório de toda cidade e/ou localidade.

Há um aspecto sombrio também contido na armazenagem: a "guarda" de pessoas em calabouços e prisões. Esta tarefa está ao encargo da deusa Nungal, a carcereira do Ekur, o complexo de templos de Enlil, o jovem deus mais importante dos sumérios, situado em Nippur. Nungal é cantada em um hino, onde a própria deusa conta o papel terrível e de grande importância que esta parte do templo, quando ela descreve os grande dias de julgamento e seu papel neles. Nestes dias, o acusado é julgado pelas águas do rio. Se ele boiar ou nadar, ele passa no teste. Mas mesmo se o acusado falhar no teste, não será permitido que este se afogue. O bastão divino de Nungal salva o condenado das águas, e ele é dado para Nungal, que o irá colocar na prisão, chamada pela deusa de "casa da vida". Nungal descreve o calabouço com termos que lembram a definição poética do inferno. A prisão de deusa é um local para suspiros e queixas, na qual os infelizes passam os dias em lágrimas e lamentações. Neste lugar, Nungal mantém os condenados sob sua guarda, até a hora em que ele ou ela tenham chegado ao "coração de seu deus(a)". Neste momento, Nungal então irá purificar o condenado e retorná-lo (ou a ela) à boa "mão de seu deus(a)". A deusa Nungal guarda e preserva o prisioneiro ou prisioneira, possibilitando que ele ou ela retornem à sociedade.

A guarda de bens exige a recuperação dos mesmos: para que sejam feitos bens utilizáveis (e prisioneiros passíveis de redenção), teria de existir um sistema adequado para manutenção de livros de contabilidade e de consumo organizado. As deusas também tinham envolvimento ativo em todos os aspectos da administração dos complexos de templos e da supervisão do funcionamento adequado das templos-estado, ou seja, os governos locais onde o templo era a unidade principal, coração e alma das cidades mesopotâmicas. Tal gerenciamento também incluía a administração das relações adequadas dentre os habitantes da localidade, sendo que tal função exigia um sentido de ordem e justiça social. A preocupação da deusa Nanshe com tais assuntos como parte de suas funções de supervisão no templo de Lagash é tema de um longo hino dedicado a tal deusa.

Todas estas atividades são parte da administração adequada do lar. Não é difícil entender que sejam atribuídas às deusas. Não é difícil entender serem tarefas atribuídas às deusas, pois elas refletiam a realidade humana. Estas eram coisas que as mulheres faziam, e que a cultura suméria também esperava que as mulheres as desempenhassem. Como sempre, a percepção dos sumérios das mulheres determinava o retrato literário das deusas. Assim como as deusas são o paradigma das mulheres em seus papéis na família, da mesma forma elas serviam como modelo para as mulheres em suas contribuições culturais e econômicas. Quando olhamos para o papel das mulheres num lar da antigüidade, encontramos um retrato que corresponde em muitos aspectos com as figuras das atividades das deusas que recém examinamos. Tal qual mulheres o faziam de forma universal, as mulheres da Suméria cuidavam da produção e administração dos bens domésticos. A necessidade das mães estarem próximas às suas crianças exigia que as mulheres ficassem ao redor de suas casas. Mas, mesmo em casa, as mulheres não restringiam suas atividades aos afazeres domésticos ou a cuidar somente de crianças. Pelo contrário, o papel feminino no lar incluía a produção de bens básicos e a gerência dos produtos domésticos.

Culinária, preparação de cerveja, tecelagem e costura são atividades que compartilham o mesmo atributo essencial: todas são atividades de transformação. Velos e lã transformam-se em tecido; grãos indigeríveis são transformados em pães e cerveja. Portanto, substâncias naturais que de imediato não trazem benefícios à humanidade são transformadas num produto cultural essencial ao bem-estar humano. Esta criação de alimentos e vestimentas "civilizadas" a partir de elementos naturais constitui a transformação básica da "natureza" em "cultura", e, como tal, ocupação arquetípica das mulheres. A mudança de gênero da deusa Ninurra para deus reflete a evolução da cerâmica desde seus tempos iniciais, ou seja, a transformação de tarefas desenvolvidas no lar por mulheres e que passam para a esfera profissional masculina.

As mulheres também eram responsáveis pela gerência e administração de seus lares. Esta era a tarefa de uma jovem adulta, e não da mulher idosa, tipicamente o papel da nora casada. Há uma carta de Ludingirra para sua mãe, que mostra que a recebedora da carta "aquela que administra a casa de seu sogro sozinha". Outra palavra suméria, agrig, mostra o envolvimento das deusas no gerenciamento de atividades. Este epiteto, que significa "mordomo, gerente, governanta" é aplicado às deusas Nisaba, Ningirim, Nininsinna, Nintinugga, Gula e Nungal. O uso deste termo é muito esclarecedor. Todas as referências a uma divindade com ele referem-se a deusas, e nunca a deuses. Por outro lado, quando o termo é usado para seres humanos, é o regente homem de suas cidades que é chamado pelo termo agrig. O motivo para tal disparidade é que agrig não é o proprietário, o/a cabeça do lar. Pelo contrário, agrig é alguém que mantém e supervisiona uma propriedade para uma outra pessoa, o/a verdadeiro dono(a) da propriedade. Os reis mantinham, proviam e administravam o templo no lugar do deus ou deusa que eram os senhores ou senhoras daquele templo. Dentro da esfera divina, esta era a função das deusas-administradoras, que eram chamadas agrig.

Há uma enorme diferença entre a situação da mulher doméstica comum administrando sua casa e o retrato de deusas administrando um grande templo e cidades-templo. Mas há um paralelo humano com a imagem da deusa, pois as deusas-administradoras são o modelo para o comportamento das rainhas. As esposas dos governantes de Lagash no Antigo Período Sumério eram as administradoras de templos e terras do templo da deusa da cidade. Como tal, elas desempenhavam também também uma forma de diplomacia econômica. Uma tábua de Lagash contém uma lista detalhada dos presentes que a esposa do governador de Lagash trocou com a esposa do governador de Adab. A realidade dos papéis das mulheres dentro de casa estava em perfeito acordo com a projeção destes papéis no mundo divino.

Não está dito pela Professora Frymer-Kensky, mas podemos deduzir que à organização macro do núcleo urbano e seus arredores, tarefa masculina, envolvendo a agricultura, defesa, conquista e preservação de territórios, domínio dos grandes deuses An, Enlil e Enki, correspondiam as artes da civilização, centradas no Divino Feminino em suas diversas atribuições. Não se pode negar que esta é uma imagem de força, que certamente moldava as atitudes e as psiques das jovens sumérias. Esta valorização das funções femininas refletidas no plano divino perdeu-se nos últimos 2,000 anos, e apenas com as conquista feministas e femininas dos últimos dois séculos é que voltaram à agenda presente. Felizmente.



AS DEUSAS E AS ARTES CULTAS

Havia também importantes atividades não domésticas que eram consideradas femininas e atribuídas às deusas. Muitas destas atividades cresceram das ações das mulheres em seus papéis como mães, mas estenderam-se além da esfera caseira por serem desempenhadas em público, para pessoas que poderiam não Ter parentesco com a artista. Dentre estas atividades, estavam o cantar dos lamentos. Luto é uma manifestação de amor duradouro e devoção, e como tal faz parte, ou cresce, do aspecto de relação das deusas/mulheres como mães, irmãs e esposas. As deusas cantam lamentos por seus filhos mortos, amados e irmãos. Os antigos catálogos literários dos sumérios listam muitos lamentos da deusa Geshtinanna feitos para seu irmão Dumuzi, que havia morrido e então descido ao Reino dos Mortos, bem como os lamentos que Inana cantou pelo mesmo Dumuzi que tinha sido seu esposo. Estas canções ainda não foram recuperadas por arqueólogos, mas temos um lamento que Inana cantou sobre o cadáver do rei Ur-Nammu, a quem ela identificava como Dumuzi. Filhos, também, eram lamentados, e são conhecidos diversos lamentos de deusas por seus filhos mortos.

O papel da deusa como carpideira estende-se para além da família, pois as deusas eram as principais cantoras dos lamentos na tradição literária suméria, as principais carpideiras sobre as cidades sumérias destruídas. Muitas composições literárias comemoram desastres históricos. Uma delas, o lamento sobre a cidade de Ur, foi escrita pouco após a destruição da cidade, ao final da terceira dinastia de Ur. Neste poema, Ningal, a deusa de Ur, chora pela cidade. De forma significativa, ela é mostrada cantando dois lamentos, um antes da cidade ser destruída, na tentativa de impedir a destruição iminente; no segundo lamento, quando a cidade foi destruída, ela se queixa da perda da cidade e de seu lar. Em outra composição, o Lamento de Eridu, mostra a deusa Damgalnuna chorando a perda de sua cidade, Eridu. O Grande Lamento pela Destruição da Suméria e Ur demonstra que os lamentos ficavam a cargo de deusa da cidade, não sendo prerrogativa do deus local. Nesta composição, as cidades destruídas da Suméria são mencionadas uma após a outra. À medida em que o deus e a deusa de cada cidade deixam seus lares, a deusa da cidade chora, "Ah, minha cidade destruída, meu lar destruído!". É a deusa que lamenta quando a deusa é a maior divindade da cidade, como Baba e Ninisina e Nanshe, e é também a deusa que chora quando ela é apenas a esposa do deus da cidade (como Namrat, a esposa de Numushuda em Kazallu). A tradição das deusas e seus lamentos continuou após o período sumério, quando o idioma sumério continuou a ser escrito como como língua culta. Na literatura posterior, algumas vezes chamada pós-suméria, um importante gênero eram os lamentos congregacionais chamados balags. Nestas composições, o mais comum é ver a deusa Inana fazer lamentos sobre cidades destruídas.

Os lamentos das deusas não eram apenas um problema restrito a lágrimas ou canções. Eles eram uma performance intensa, que exigia talento para a representação dramática e a atuação de temas dolorosos. Quando Ninshubur, a assistente e conselheira de Inana, começa a fazer o lamento por sua senhora, que está presa no Reino dos Mortos, ela "esbugalhou seus olhos, ela tocou em seu nariz, ela tocou nas suas coxas com as mãos tal qual garras". Da mesma forma quando Damgalnunna começa o lamento por Eridu, "Ela tocou seus seios como se fossem garras, ela levou suas mãos aos olhos, ela soltou um grito de dor em frenezi, ela segurou a adaga e a espada em suas duas mãos; as armas rangiram ao se tocar, e ela cortou seus cabelos como galhos, soltando um amargo lamento". E quando Ningal se lamenta a respeito de Ur, "seus cabelos ela cortou como se fossem galhos; em seu peito, sobre o ornamento de moscas de prata, ela bateu e bradou "pobre de minha cidade!", com os olhos cheios de lágrimas, amargamente ela chorou". Esta auto-laceração e frenesi é quase certamente uma reflexão de luto na esfera humana. Como parte dos lamentos públicos literários, tais atos forneciam a expressão pública da tristeza, e permitia a catarse emocional nos atores e platéia dos lamentos. Levando-se em conta parâmetros de religião comparativa, o povo mesopotâmico, ao ouvir os poemas, podem bem Ter entrado totalmente na performance, tendo também tido a experiência e manifestado estas mesmas ações dramáticas.

Apesar de seu caráter passional, os lamentos não eram primeiramente feitos para ventilar emoções. Eles eram um ato intencional, especificamente designado para servir como uma intercessão. O choro de Ninshubur por Inana na Descida à Mansão dos Mortos tinha um objetivo específico: Ninshubur chorava frente aos deuses a fim de fazê-los agir para resgatar Inana, que estava sendo mantida como priosioneira no Reino dos Mortos. Da mesma forma no Lamento pela destruição de Ur, onde Ningal pretendia convencer os deuses a não destruir a cidade de Ur. Neste caso, ela não teve sucesso. Mas após a destruição, ela continuou o lamento, a fim de despertar a misericórdia dos deuses. Tais lamentos intercessórios freqüentemente eram bem sucedidos. Os lamentos de Amageshtinanna eram tão incessantes que os deuses concordaram que ela tomasse o lugar de Dumuzi no Reino dos Mortos por certo período durante o ano. No Lamento pela Destruição de Nippur, o próprio templo também se lamenta até Enlil dizer que há tinha havido lamento suficiente, e que ele teria compaixão. No Lamento pela Destruição da Suméria, Nana, o deus da Lua, não aceita a declaração de Enlil de que chegou o tempo de Ur ser destruída: Nana continua seu lamento até seu pai Enlil voltar atrás, prometendo que a cidade será reconstruída. Nos lamentos históricos, o luto das deusas sobre suas cidades destruídas eram intercessões, pois a meta era obter a reconstrução das cidades destruídas. Todas as deusas foram bem sucedidas nesta empreitada, pois os Lamentos eram recitados quando do término da reconstrução do templo, da cidade e do retorno dos deuses aos seus lares em suas cidades, sendo que os Lamentos muitas vezes contém referências a este período de alegria e comemoração.

As contribuições públicas e culturais das deusas também incluíam a interpretação dos sonhos, que é uma forma de advinhação. No Épico de Gilgamesh, a mãe divina de Gilgamesh, Ninsun, explica ao jovem monarca o significado de seu sonho. Meio milênio antes, num hino ao Rei Gudéia de Lagash (cerca de 2.200 Antes da Era Comum, ou cerca de 4.200 anos atrás), a deusa Nanshe é chamada da grande intérprete de sonhos dos deuses, uma especialista neste campo, sendo então quem irá interpretar o sonho de Gudéia para ele. Além de se poder pedir para Nanshe auxiliar na interpretação de sonhos, ela também podia auxiliar na incubação de um sonho, ou seja, fazer um sonho acontecer através de um conjunto de imagens previamente estudadas e trabalhadas às quais se pretende encontrar resposta no sonho. Este é o papel que Nanshe desempenha na Canção dos Bois do Arado, onde o fazendeiro vai sonhar com Nanshe e faz com que ela fique ao seu lado para induzir o sonho.

Os lamentos e a interpretação de sonhos são apenas duas das contribuições culturais das deusas, cujas atividades públicas incluíam o canto, a cura e o ensino. Muitas deusas são padroeiras do canto. Nanshe e Geshtinanna são chamadas de excelentes cantoras. Um grupo diferente de deusas está associado à medicina, a deusa Gula e outras deusas são identificadas com ela: Nintinugga, Ninkarrak, Ninisinna e Baba. Gula é a deusa que conhece as plantas, sendo a grande médica de seus fiéis. Em tempos posteriores na Babilônia, havia dois tipos de profissionais envolvidos nas artes médicas, ou seja, o(a) médico(a) que curava por encantamentos (ashipu) e o(a) profissional de medicina como o(a) conhecemos em nossos dias, chamado(a) asu. Cada um tinha seus padroeiros, sendo que a deusa Gula era a padroeira da Medicina e das artes da cura.

Em última análise, todas as artes culturais - e as atividades que as possibilitam, como sabedoria e a escrita - eram província da deusa Nisaba. No sonho de Gudéia registrado no grande hino de seu templo, Nisaba é a donzela do estilete divino de prata (ou seja, o lápis ou caneta divinos) que que consulta uma tábua estelar que tem aos seus joelhos. Ela é freqüentemente identificada com material de escrita de caráter simbólico. Ela é a dona de uma tábua de lápis lazuli, é a deusa do estilete da escrita e das linhas de medição com as quais se medem os céus. Nisaba era a deusa da escrita, da contabilidade, da pesquisa. Na revisão do Ano Novo, Nisaba colocava as tábuas de lápis lazuli em seus joelhos, pegava o estilete dourado em suas mãos e alinhava os servos para Nanshe. Nisaba não era uma secretária. A feitura das listagens no Hino de Nanshe era feita por seu marido, Haya. Aqui, ela é aquela que matém os registros para Enlil. Conforme dito num hino para o rei Ishib-irra, "nos locais onde ela se aproxima, encontra-se a escrita".

Nisaba é o paradigma da mulher sábia, de grande percepção e conhecimento, que tudo sabe. Ela é também a grande professora, que dá conselhos para toda terra e dá sabedoria aos reis. Nisaba epitomisa a sabedoria divina quanto o Dom do conhecimento para a humanidade. Segundo as palavras de um hino do rei Lipit-Ishtar:

Nisaba, mulher radiante de alegria,

Mulher fiel, escriba, deusa que tudo sabe,

Guiou seus dedos sobre a argila,

Embelezou a escrita nas tábuas,

Fez a mão resplandecente com o estilete de ouro,

A linha de medição, a linha de pesquisa,

A régua que dá sabedoria,

Nisaba deu a você da forma mais generosa.

A escrita, a contabilidade e a tomada de notas são essenciais para a civilização urbana, e Nisaba é portanto honrada como Aquela que faz as cidades possíveis, ou seja, " o lugar onde você não se estabelece, ali a humanidade não se estabelece, e não são construídas as cidades". Outras deusas estavam também envolvidas com ocupações cultas, tais como Amageshtinanna, que compôs muitos lamentos para seu irmão morto Dumuzi, também chamada Mestre dos Escribas. A deusa Nintu também é chamada A Grande Sábia de todas as Coisas. Mas era principalmente Nisaba que preenchia este papel, honrada pelos escribas, que em geral acabavam suas composições com a sentença "Nisaba, seja louvada!"

Os escribas que teciam honrarias à Nisaba eram em geral homens. Por que, então, eles imaginavam sua profissão estar sob a tutela de uma mulher? Por que cantoras e médicas, muitos dos quais também eram homens, rezavam e honravam suas deusas padroeiras? A resposta está na natureza especializada destas atividades e na contribuição das mulheres no desenvolvimento das mesmas. As artes culturais são ocupações especializadas, que exigem a acumulação do conhecimento e de tecnologia. Estas são atividades de sabedoria, e como tal, atribuídas a mulheres sábias. Parte da razão pela qual as mulheres eram consideradas sábias é psicológica, pois as mulheres eram aquelas que desempenhavam as funções do cuidado das crianças. Isto queria dizer que a criança desenvolvia desde os primórdios da infância a imagem da toda-poderosa e sábia "deusa do quarto de dormir e brincar". Há também um outro fator histórico que deve ser mencionado. Os homens estavam engajados em atividades que exigiam músculos e esforço físico. No início da formação da Mesopotâmia, os homens passaram muito tempo arando com gado, cavando canais para irrigação, e construindo muralhas para defesa. As mulheres, por outro lado, cuidavam das crianças em casa, criando produtos básicos através da culinária, tecelagem e preparo da cerveja. Tais atividades são sofisticadas em termos tecnológicos, e também são complexas, devendo parecer particularmente mais difíceis do que aquelas atividades nas quais os homens participavam. A natureza elaborada das atividades femininas devem Ter reforçado desde os primórdios da infância a impressão da mulher sábia. Estes dois fatores contribuem para a imagem da mulher como aquela que acumula conhecimento, e que dispensa também conhecimento especializado.

Na verdade, a associação de deusas com estas artes culturais faz sentido em termos humanos. Em todas as atividades domésticas de produção, armazenagem e administração, a relação das deusas com o trabalho desempenhado pela mulher humana nas casas da Suméria é facilmente visível. Havia uma congruência de deusas e mulheres nas artes cultas; e desta associação de deusas com estas artes podemos deduzir que as mulheres também estavam envolvidas nestas ocupações. De fato, muitas destas ocupações culturais são uma extensão direta das atividades das mulheres na casa, como esposa leal e mãe e como produtora dos bens da própria casa. Podemos exemplificar tal fato como no caso das lamentações, que provém do grande amor que mães e irmãs têm e expressam por seus filhos e irmãos. Mesmo o papel de deusas como lamentadoras públicas nas lamentações é uma projeção maior de suas imagens como mães de suas cidades.

Outras artes culturais também cresceram a partir do papel doméstico das mulheres, principalmente das mães. Estas poderiam ser chamadas para explicar o mundo para seus filhos, e para interpretar seus sonhos, como no caso de Gilgamesh, onde a mãe do jovem rei de Uruk explica o significado dos dois sonhos que Gilgamesh teve, quando este vai até ela por este motivo. Como muitas destas artes, a interpretação dos sonhos moveu para longe da casa, transformando-se também numa das especialidades da Alta Sacerdotisa de Ur. As mães cantavam cantigas de ninar para seus bebês (algumas das quais foram recuperadas) , e foram lembradas como cantoras. Da mesma forma, cura como uma atividade feminina provavelmente também cresceu do papel doméstico das mulheres. Com seus conhecimentos de plantas e cuidados aos membros dependentes da família, as mulheres foram provavelmente as primeiras a desenvolver a prática médica.

A estreita associação de mulheres com o aprendizado no pensamento sumérios é intrigante, pois em nossos tempos e apenas para algumas mulheres é que foi possibilitado o acesso à cultura. Literatura, estudos e mesmo os idiomas das culturas clássicas eram todos prerrogativas masculinas. Tendo em vista estes fundamentos, a figura da deusa Nisaba como a professora divina dos sumérios e deusa do aprendizado e da escrita é particularmente surpreendente para os modernos leitores ocidentais. Além da psicologia da memória materna e da memória cultural das tecnologias mais sofisticadas da atividade de produção das mulheres, o paralelismo constante entre deusas e mulheres deveria nos alertar para a possibilidade da contribuição feminina para o desenvolvimento do alto aprendizado e cultura. Há evidência na literatura suméria de tal contribuição feminina nas atividades culturais e literárias mais antigas na Suméria. Em Enmerkar e o Senhor de Aratta, um relato heróico sobre um dos primeiros reis sumérios, quando Enmerkar vai até a cidade de Aratta (cidade esta a qual ele submeteu a cerco para obter suas pedras e minerais preciosos), sua conselheira vai até ele em elegante esplendor para aconselhá-lo e ao rei de Aratta que eles deveriam trocar alimentos por minerais preciosos. Como todos os épicos heróicos, este texto não foi escrito na época dos primeiros reis que são o tema de tais obras, mas podem ser uma lembrança de que em períodos anteriores, as mulheres serviam como sábias e conselheiras. É um tema recorrente na literatura da Mesopotâmia que em momentos cruciais nas aventuras de heróis e reis, eles recebam conselhos(solicitados ou não) de mulheres, humanas ou divinas, as quais consistentemente oferecem ajuda, sabedoria e bom senso.

Pode ser significativo neste sentido o fato de que os mais antigos poemas nos quais se reconhece um autor foram escritos por uma mulher - Enheduanna, filha de Sargão. Ela foi instalada por seu pai como Alta Sacerdotisa (En) do deus da Lua, Nanna em Ur. Nesta capacidade, ela escreveu os grandes poemas Ninmesharra e Nininshagurra, um ciclo de hinos aos templos da Suméria, e talvez também, Inana e Ebih. Estamos acostumados a pensar nela como se fosse uma anomalia, uma mulhere solitária escrevendo numa área que pertencia aos homens. Mas este cenário pode não ser verdadeiro. Enheduanna provavelmente não foi a primeira Alta Sacerdotisa, e pode bem ter sido parte de seus deveres de ofício compor e escrever hinos. Não há realmente motivo para supor que as composições anônimas do período foram escritas apenas por homens. Mesmo mais tarde, durante o período da Terceira Dinastia de Ur, as canções de amor de Shusin foram provavelmente escritas por sua esposa, Kubatum, e A Morte de Ur-Nammu pode ter sido escrita por sua viúva.

O impulso mais antigo para o desenvolvimento da escrita foi econômico, pois a escrita se desenvolveu do uso de sinais para registrar a transferência de produtos, mercadorias, animais e serviços. Uma vez que as mulheres em sua maioria controlavam o ambiente doméstico, e podem ter-se engajado em tais transferências ou pelo menos mantinham o registro de tais transações, podemos especular que foram estas mulheres que desenvolveram a arte da escrita. Isto iria explicar por que os atos de manter registros e da escrita, bem como a sabedoria que tais tarefas possibilitam que sejam acumuladas, estão todos atribuídos à figura de uma deusa.

Apesar destas contribuições culturais das deusas serem derivadas das ações de mulheres, a relação entre a atividade das deusas e as atividades das mulheres na vida cultural não possui uma paridade perfeita. Num determinado momento, o retrato das deusas na cultura reflete tanto o papel real das mulheres no momento em que a literatura foi escrita e a memória cultural da contribuição das mulheres para o desenvolvimento da civilização. Mas apesar da lacuna do tempo entre a sociedade e a imagem, entre o papel e a geradora do papel, as mudanças nos papéis entre homens e mulheres no desenvolvimento contínuo da cultura eram em útlima análise representadas na esfera divina. A configuração do envolvimento cultural das deusas estava constantemente evoluindo, assim como o papel das mulheres na cultura. Estas mudanças não eram aleatórias. Há uma direção constante no movimento, que aponta para uma diminuição das áreas de influência feminina, com mais ocupações das deusas sendo tomadas por divindades masculinas.

Já mencionamos uma destas mudanças, ou seja, como Ninurra, deusa da cerâmica, foi transformada num deus e por último, tendo sido absorvida pela figura de Enki. Uma mudança semelhante ocorreu nas artes Mânticas. Nos textos mais antigos do período histórico, o dos textos de Fara e Abu Salabikh (cerca de 2.500 Antes da Era Comum), havia uma deusa muito importante chamada Ningirim, que aparece de forma proeminente na literatura de encantamentos como exorcista dos deuses, a deusa das fórmulas mágicas e da purificação da água. Em tempos sumérios posteriores, exorcismos e encantamentos estão nas mãos de Enki e seu filho, Asarluhi; ainda mais tarde na literatura mesopotâmica, os papéis destes dois últimos deuses são tomados por Ea e Marduk. Ningirim nunca desaparece inteiramente da literatura mágica posterior da Mesopotâmia, mas ela fica detentora de um papel menor cuja função em exorcismos e encantamentos cede lugar a Enki e Asarluhi, sendo portanto um pálido eco de sua importância anterior.

Nestes dois exemplos, as deusas dos períodos anteriores foram diminuídas ou suplantadas à época dos textos sumérios clássicos. Em outras atividades envolvendo deusas que permanecem importantes ao longo de todo período sumério, profissionais de sexo masculino continuam a atribuir suas atividades `as deusas. Esta é uma forma de artifício cultural, através da qual os homens tomaram lugares anteriormente ocupados por mulheres, mas preservam a memória cultural da contribuição feminina pela projeção de seus papéis na figura das deusas. No caso das artes da cura, Gula permanece deusa e patrona, mas encontra-se neste papel acompanhada por Damu. Damu, originalmente filha de Ninisinna e então de Gula, com quem Ninisinna é identificada. Mas num determinado ponto, Damu transformou-se no filho e parceiro de Gula.

Nos lamentos, um desenvolvimento interessante mostra o fato de que a cultura preserva a memória das contribuições femininas do passado. Os lamentos privados continuaram a ser feitos por mulheres, mas os lamentos públicos escritos após o período sumério, chamados de balags, eram executados por um tipo especial de cantor masculino conhecido como gala, e não mais por mulheres. Estes cantores profissionais do sexo masculino atribuíam suas atividades às deusas, colocando os lamentos que cantavam nas bocas das deusas, Inana em especial. Além do mais, estes cantores tinham uma convenção especial para cantar estes lamentos, uma que também era usada para o registro do discurso das deusas em textos mitológicos. Eles cantavam estes papéis femininos num dialeto particular sumério chamado eme.sal (a língua fina). O nome deste dialeto é uma indicação de que os sacerdotes gala cantavam numa voz fina, provavelmente de falsete. Esta também é uma indicação de que estes lamentos eram originalmente cantados por cantores. Mais tarde, quando estas cantoras foram substituídas por homens, o papel delas foi tomado por sacerdotes especiais que cantavam com voz fina para imitar àquelas a quem haviam substituído.

Esta diminuição do papel das deusas nos assuntos culturais é um dos aspectos de um processo que se intensificou de forma progressiva, através do qual as deusas foram ficando cada vez mais marginalizadas. Mas ao longo destas mudanças, um fator permaneceu constante. A cultura continuou a ser atribuída aos poderes femininos e masculinos, mesmo quando o equilíbrio começou a pender para o lado masculino. O papel feminino começa, portanto, a decrescer e então a servir de paradigma para a recessão das mulheres. E uma vez que este paradigma de monopolização masculina foi projetado na esfera divina, ele tanto serviu de modelo como forneceu uma garantia sagrada para o deslocamento cultural das mulheres na Mesopotâmia Antiga.

Parece-nos, portanto, que apesar do crescente patriarcalismo presente na Mesopotâmia, pelo menos desde os tempos históricos, havia espaço para soar a voz feminina, projetada na esfera divina, cumprindo várias funções dentro da cultura. O que é surpreendente, acima de tudo, é a vitalidade com que a imagem feminina se projeta ainda em nossos dias, a partir das fontes que temos disponíveis no cuneiforme, como através de mitos, cartas, hinos grafados em tábuas de argila, etc. Particularmente, este é um dos fatores principais que me impelem a trabalhar mais para restaurar a presença das deusas do panteão mesopotâmico e levar este conhecimento para a língua portuguesa e a todos vocês.




Fonte: http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/deusasabedoria.html