No alto de rochas de centenas de metros, os monges ortodoxos viviam em reclusão absoluta
Diogo Bercito
Do chão ao mosteiro de Varlaam, o segundo maior de Meteora, são 373 m. O noviço quase reconsidera sua decisão enquanto a rede é baixada por seus colegas lá de cima. É a primeira prova de uma vida de isolamento e oração - e orar é o que ele faz agora, com a rede raspando contra as pedras, o chão se distanciando, o vento gelado cortando por trás das orelhas e, o mais terrível, as cordas. Ouviu dizer que essas, rangendo ameaçadoramente, só eram trocadas "quando Deus decidia partir uma delas". Meia hora depois, fica claro que Ele estava de bom humor e o noviço chega ao topo, já disposto a nunca mais sair do mosteiro (por esse mesmo caminho, ao menos).
Meteora significa "suspenso no ar", em grego, e é um nome mais do que adequado aos monastérios edificados, a partir do século 14, sobre as rochas, de cerca de 320 m de altura (equivalente ao tamanho da torre Eiffel. A partir do nível do mar, os picos passam de 600 m), situadas na região de Tessália, na Grécia central. Atualmente, apenas seis deles estão ativos, mas relatos antigos dos monges mencionam até 24 construções, das quais sete ruínas são conhecidas. O conjunto de monastérios é cercado de lendas, como essa de que os padres só trocavam as cordas quando Deus quisesse. "A história de Meteora está obscurecida também por tradições orais", afirma Alice-Mary Talbot, especialista em estudos bizantinos da Universidade Harvard. As bibliotecas dos monastérios guardam cerca de mil documentos, mas os monges se preocupavam mais em copiar títulos de propriedade do que contar a história da comunidade.
Não tinha nada de mito, porém, o isolamento extremo a que os monges se impunham. Se hoje existem escadas, pontes e estradas dando acesso aos mosteiros, até a década de 1920, o único jeito de chegar lá era por escadas precárias ou por redes presas a roldanas e cordas, puxadas pelos monges por centenas de metros - usadas também para transportar alimentos e objetos. Subir podia ser incômodo, mas era um privilégio: o número de religiosos não passava de 20 por mosteiro. Mulheres só seriam admitidas a partir de 1961, quando o Mosteiro de Santo Estevão foi reformado e ocupado por freiras.
O noviço que fosse admitido levava três anos até receber sua tonsura, que o consagrava como monge. Diferentemente dos monges católicos, que raspam o topo da cabeça, a tonsura dos ortodoxos corta quatro mechas do cabelo, na frente, aos lados e atrás, formando uma cruz. Após esse ritual, o monge nunca mais corta o cabelo ou a barba.
Os religiosos participavam de atividades como pintar ícones, cozinhar, estudar, copiar documentos e escrever, mas sua principal função era rezar. Monges hesiquiastas, como os de Meteora, meditam à espera da visão da luz divina, numa posição chamada de "omphaloskepsis": queixo no peito e olhos fixos no umbigo. A postura é completada pela técnica de respiração e pela repetição exaustiva de preces, de sete a 15 horas por dia. Pela dedicação à reza, e também pela localização, a comunidade não era autônoma - havia jardins e algumas árvores frutíferas, mas os religiosos essencialmente viviam do que camponeses nos arredores produziam, em terras que eram propriedade da Igreja.
Fuga do mundo
Em Meteora - The Rock Monasteries of Thessaly, o bizantinista Donald Nicol notou como as construções refletem as concepções dos ortodoxos: "No Ocidente, os monastérios eram inseparavelmente associados com com a preservação e disseminação do conhecimento e da cultura na Idade Média, que se seguiu ao colapso do Império Romano do Ocidente, no século 5. Esse não foi o caso no leste. Pois, no Império Romano do Oriente, não houve essa ruptura na continuidade histórica. Os monges tinham outra função na sociedade. Sua função primeira era rezar, por eles, pelo Império, pelo mundo". E Meteora, por ser especialmente inacessível, tornou-se o símbolo dessa religiosidade de afastamento. Os monastérios do local, como escreve Nicol, "são a maior realização desse conceito rarefeito de uma espiritualidade erguida acima de todas as coisas terrenas".
Foi para se elevar por meio do afastamento que os mosteiros surgiram. Em 1334, o eremita Atanasios Koinovitis chegou ao vale, buscando isolar-se da sociedade e do pecado. Atanásio foi escalando as pedras com o auxílio de escadas e andaimes de madeira, procurando o lugar ideal para suas orações. Ao chegar ao topo da Platys Lithos, a "pedra larga", o monge decidiu não descer mais. Batizou a rocha de "metéoron", construiu uma igreja nela e aceitou 14 discípulos, entre outros eremitas que viviam no vale. O lugar sobrevive, e é chamado Monastério da Transfiguração do Salvador, ou Megalou Meteorou (Grande Metéoron).
Opressão e instabilidade
Apesar de Meteora ter surgido por razões místicas, o contexto político da época tornou sua localização particularmente conveniente. Em 1386, os otomanos invadiram pela primeira vez a Tessália, conquistando a região em 1393. As sucessivas pilhagens das décadas seguintes reforçaram, na prática, o papel dos monastérios isolados como fortalezas incumbidas da tarefa de preservar a herança bizantina. Assim, o complexo tornou-se santuário de relíquias cristãs. O mosteiro de Varlaam, por exemplo, guardava um pedaço da Verdadeira Cruz, um dedo de João Batista, um dedo de são Basílio, um pedaço da escápula do apóstolo André e o braço esquerdo de João Crisóstomo.
O Monastério de São Nicolau Anapausas, erguido em 1388, contém alguns dos afrescos mais importantes da arte bizantina. São trabalhos pintados em 1527 pelo monge Teófanes, de Creta, que em 1535 decoraria também diversas igrejas no monte Atos, que é uma espécie de Vaticano da religião ortodoxa.
Como guardiães dessas relíquias, os monges ganharam influência e terras, sendo proprietários de moinhos e vinhedos na base das rochas. Mas a instabilidade política continuava a ameaçar a região. Os otomanos islâmicos, que acabaram com o Império Bizantino, em 1453, variavam entre tolerância relativa e opressão decisiva, conforme o humor do monarca da vez. A Grécia obteve sua independência em 1832, mas a Tessália continuou sob o domínio otomano.
Em 1897, a Tessália foi palco da guerra greco-turca, levando à pilhagem dos monastérios - e ao fim decisivo da ocupação muçulmana, no ano seguinte. Meteora recebeu refugiados nesse período e também durante as duas Guerras Mundiais, quando foi ocupada por guerrilhas. A presença de soldados contribuiu para acelerar o declínio iniciado nos séculos anteriores. Móveis viraram lenha e os monastérios foram rápida e gravemente depredados.
As reconstruções, iniciadas em meados do século 20, e ainda em andamento, apostam não exatamente na retomada do movimento monástico, mas no potencial turístico do local, incluído na lista da Unesco de patrimônio cultural da humanidade em 1988. Degraus foram esculpidos nas pedras, facilitando o acesso. Irritados com os turistas, dezenas de monges foram embora nos anos 1960. E Meteora, a joia do ascetismo bizantino, tornou-se, nas palavras de Donald Nicol, "simplesmente monastérios construídos em uma parte remota do país e que, por acaso, estão no topo de rochas, em vez de na terra firme". Ainda assim, são impressionantes.
Os mosteiros
Eremitas ocuparam a região de Meteora já no século 11, mas as construções nas alturas vieram depois
SÃO NICOLAU ANAPAUSAS (1388)
É uma pequena igreja no topo da rocha, mas contém alguns dos afrescos mais importantes da arte bizantina, com um realismo que lembra as obras da Renascença ocidental. O são Nicolau homenageado é muito venerado no Oriente e mais conhecido no ocidente como Papai Noel.
MEGALOU METEOROU (SÉCULO 14)
Primeiro e maior dos monastérios de Meteora, lá fica a Igreja da Transfiguração de Cristo. Durante certos períodos, teve autoridade sob as demais comunidades monásticas da região. Hoje é a sede de um museu e o ponto mais visitado pelos turistas.
ARLAAM (SÉCULO 16)
Fundado pelos monges Nectário e Teófanes, das ruínas da igreja erguida ali no século 14 por um monge chamado Varlaam. Ainda preserva uma torre datada de 1536, da qual guindastes erguiam materiais e visitantes. Hoje, 195 degraus permitem a visita a partir do chão, sem essa aventura toda.
ROUSÁNOU (SÉCULO 16)
Dedicado à Transfiguração de Jesus Cristo, tem santa Bárbara como padroeira. Possui as celas dos monges cavadas dentro da rocha. As duas pontes que atravessam os abismos e dão acesso ao monastério foram construídas em 1936.
SANTÍSSIMA TRINDADE (1476)
É a foto que abre a reportagem. Registros apontam que o material para a construção demorou 70 anos para chegar ao topo. Apenas quatro monges moram nas suas dependências. É o mais difícil de atingir hoje em dia, exigindo uma caminhada pelo vale e uma subida pela montanha.
SANTO ESTEVÃO (SÉCULO 14)
Fundado por Antônio Cantacuzene. Em 1880, cerca de 30 monges moravam lá. Por causa de ataques na Segunda Guerra, o local estava deserto em 1960, quando foi reformado e habitado por freiras no ano seguinte. Afirmam guardar ali a cabeça do mártir Charálambos (século 3), relíquia considerada capaz de curar a peste bubônica.
Ilustração: Bruno Algarve
SITES
http://tiny.cc/meteora
Página do Ministério da Cultura da Grécia, em inglês. Inclui galeria de fotos
http://tiny.cc/meteoraune
Resumo da Unesco sobre a história dos monastérios.
LIVRO
Meteora - The Rock Monasteries of Thessaly, Donald Nicol, Chapman & Hall, 1963.
É citado como referência por historiadores, mas está fora de catálogo.
No alto de rochas de centenas de metros, os monges ortodoxos viviam em reclusão absoluta
Fonte: Aventuras na História