11.6.12

Monja Singular

Considerada uma das figuras mais singulares e importantes do século XII europeu, suas conquistas têm poucos paralelos mesmo entre os homens mais ilustres e eruditos de sua geração

Por Morgana Gomes

Personalidade muito citada, mas de fato pouco conhecida pelo grande público moderno, apesar da aparência frágil e da saúde, por vezes precária, rompeu as barreiras dos preconceitos contra as mulheres que existiam em seu tempo, se tornou respeitada como uma autoridade em assuntos teológicos e ainda foi louvada por seus contemporâneos em altos termos.


De família nobre, seu nascimento se deu em 1098, em Bermershein, arrabalde do condado de Spanheim, ano em que a Primeira Cruzada Cristã chegava ao fim. Na infância, recebeu a educação destinada as meninas de alta linhagem.






Aos setes anos, ao ser confiada a Jutta, uma religiosa reclusa do Monte Saint Disibode, passou a aprender letras, latim, rudimentos de Medicina e de ciências naturais, ao mesmo tempo em que era orientada em direção a religiosidade fervorosa e absoluta. Aos 15 anos, recebeu o véu de monja e, então, começou a demonstrar sua forte personalidade, centrada em três princípios básicos: a concentração, meditação e contemplação. Em conjunto, eles não a impediam deagir conscientemente. Nessa condição, durante anos, aperfeiçoou seus conhecimentos em diversas áreas. Com a morte de Jutta, em 1136, Hildegard passou a dirigir a pequena comunidade que havia se formado em torno da reclusa.


Mas, apesar de sua devoção e obediência às leis sacrossantas, não conseguiu se entregar a vida vegetativa proposta. Embora tenha enfrentado muitas dificuldades, se desvencilhou da obediência profunda que lhe foi imposta, abandonou a comunidade e fundou, em 1147, um mosteiro beneditino independente em Rüpertberg, perto de Bigen, que se fez seguido por outro, em Eibingen, perto de Rüdesheim.


Desde então, como filha da Igreja, mantinha-se submissa aos seus chefes e pais espirituais. No entanto, não escondia seus “dons espirituais” nem “sobrenaturais”. Inquieta, empreendeu toda a sorte de pesquisas, nos campos da física, química e medicina. Também não vacilava em participar de polêmicas teológicas e morais.


Considerada por muitos como uma médium, a partir da meditação, estabeleceu contato com o divino, que lhe ordenou que passasse para o papel o que lhe era revelado. Quase que imediatamente, ela produziu o manuscrito “Scie Vias” (A Voz do Senhor), um livro estranho e de incontestável grandeza, cujo entendimento ultrapassava os conhecimentos clerical e medieval, no qual se destacavam símbolos e interpretações, visões, bem como conselhos morais, recriminações e exortações.




Atual Abadia de Santa Hildegard em Rüdesheim


Santa ou Feiticeira?
Estabelecida a dúvida se Hildegard era dona de uma grande imaginação ou uma simples impostora, seu manuscrito se tornou objeto de um concílio excepcional, que se reuniu em Trèves, no ano de 1148, sob a alta presidência do Papa Eugenio III e de 18 Cardeais. Contudo, após examinálo, a mais alta autoridade católica e seu séquito reconheceram que naquelas páginas havia a inspiração do Espírito Santo e, em consequência, aceitaram a profetisa como uma mensageira de Deus e serva fiel da Igreja.


Propagada a aprovação do manuscrito, em paralelo, a santidade de Hildegard começou se estabelecer e muitas cidades passaram a lhe servir de cátedra: Tréves, Cologne, Metz, Bamberg etc. Ela falava ao povo humilde, se justificava perante o Clero e ainda se acercava dos mais importantes personagens de sua época, com os quais mantinha uma correspondência cheia de mistérios, segredos e conselhos úteis. Também redigiu mais dois livros. “O Livro dos Méritos” apresentava dados da moral cristã em imagens simbólicas, mas “O Livro das Obras Divinas” era essencialmente cientifico.


O piedoso São Bernardo, o Imperador e o Papa passaram a escutar e reconheceram que a abadessa transbordava sabedoria e bom senso. Assim, durante anos, Hildegard com sua autoridade encantadora reinou no Ocidente, a ponto de intervir nas discórdias entre os Estados, momentos para os quais exercia o papel de pacificadora. Seus conselhos evitaram inúmeros conflitos entre os povos da Europa.


Mas, ao mesmo tempo em que a “eminência branca” da corte alemã distribuía remédios para a teologia, filosofia e política, ela ainda atendia as pessoas que diariamente mendigavam por sua ajuda, cura e predições, dentre as quais, a última se realizou no nascer do Sol, do décimo sétimo dia de setembro de 1789. Depois de 81 anos, Hildegard deixava o Santo Império romano-germânico em definitivo, rumo ao que ela mesma chamava de sua grande jornada.



Páginas da história: retrato de Hildegard que se destaca no livro Scie Vias


O Período em Que Viveu
Apesar do papel preponderante que exerceu, boa parte dos 81 anos vividos por ela, esconde-se entre as sombras do comércio clerical. Em sua época, a Europa central estava experimentando um período de florescimento, depois de séculos de agitações internas, oriundas da fragmentação do Império Carolíngio e das ameaças externas decorrentes das invasões vikings ao norte e oeste, magiares a leste e mouras no sul.


Com a cessação desses problemas a população voltou a crescer e, enquanto a agricultura e a educação se desenvolviam, a tradição clássica começou a ser recuperada. Novas ordens religiosas foram fundadas. Entre as diversas partes da Europa, o reino da Germânia foi relativamente poupado das aflições e se tornou uma das primeiras áreas a dar sinais de revitalização. Contudo, havia os graves problemas internos.


A estrutura do reino, formado por vários pequenos estados mais ou menos independentes, não era coesa. Muitos desses estados eram regidos por clérigos de nascimento nobre. Em virtude dessa situação, a Igreja tinha influência sobre assuntos laicos, embora fosse incapaz de impedir o surgimento de diferenças com o papado, especialmente da parte de Henrique, rei da Germânia e depois imperador do Sacro Império, que acabou excomungado e deposto pelo papa Gregório VII em 1075 – fato que provocou uma guerra civil que durou, com altos e baixos, até a assinatura da Concordata de Worms, em 1122.


Desde o nascimento de Hildegard, a compra de títulos eclesiásticos era corriqueira, inclusive entre pessoas sem a menor vocação religiosa. Príncipes e bispos vendiam abadias e mosteiros sem o menor embaraço, a quem lhes pagasse o melhor preço. Já os novos ocupantes faziam comércio dos cargos correlatos; a simonia infectava toda a hierarquia do clero e nem o trono papal estava isento das imoralidades. Os Estados germânicos também haviam se apropriado das investiduras clericais à revelia da Igreja e, como os cargos sacros estavam vinculados frequentemente à posse de bens e terras, criou-se efetivamente uma classe de poderosos clérigos que em nada diferiam dos senhores feudais em seus propósitos, práticas e ambições – tanto que eles mantinham exércitos e mulheres em concubinato.


Heresias, cismas religiosas e antipapas tornavam a vida religiosa tumultuada, desvirtuada e confusa. Consequentemente, boa parte da atuação da monja Hildegard – ainda que distante dos principais conflitos que poderiam afetar seu ritmo de vida monástica, que permaneceu mais ou menos livre dos efeitos perturbadores dos acontecimentos políticos e militares – foi dedicada a tentar corrigir essa situação. Sua correspondência com reis e prelados eminentes, por exemplo, prova que ela não poupava ásperas censuras contra àqueles que considerava corruptos.


"Príncipes e bispos vendiam mosteiros sem o menor embaraço e faziam comércio de cargos correlatos. A simonia infectava toda a hierarquia do clero e nem o trono papal estava isento das imoralidades"


Além disso, em relação à atuação pública das mulheres, havia várias restrições, que se faziam mais fortes no campo religioso, devido ao banimento da fala feminina no culto imposto pelo apóstolo São Paulo, que também foi estendido a toda atividade de exegese e pregação. Contra essa tendência, sua ativa personalidade despontou como pioneira.




Ilustração da Concordata de Worms, estabelecida em 1122 entre o Papa Calisto II e Henrique IV, Sacro Imperador Romano-Germânico


Misticismo e Santidade
Na época de Hildegard o conceito de Deus, até então carregado de atributos da justiça inflexível, de inacessível majestade e de ira vingativa contra os pecadores, sofreu uma transformação que lhe conferiu um caráter mais paternal e benevolente e o aproximava do homem. Por conseguinte, surgiu o desejo de uma experiência do divino, mais direta e íntima.


A legitimação desse desejo pela autoridade eclesiástica foi seguida pelo desenvolvimento de uma religiosidade de índole mística, profusamente colorida por expressões físicas e marcada pelo irracionalismo. Por isso, estudos recentes apontam associações entre o misticismo medieval com a histeria e outros fenômenos psicossomáticos, pois vários místicos daquele tempo combinaram intensa devoção com grandes doses de sofrimento corporal, não raro autoinfligido em severas disciplinas e penitências físicas, numa ampla gama de modalidades e efeitos que não excluía o visionarismo de caráter sexual.


Nesse contexto, embora já se tenha dito que Hildegard descreveu o organismo feminino, seu misticismo não foi exatamente típico, pois combinava percepções sensoriais de várias espécies com um conteúdo alegórico- teológico intenso e profundo que, aliado a sua produção científica e moralizante ganharam uma moldura mística, embora a instrução ética e a teologia não façam necessariamente parte desse universo místico.

Concepções da Monja
Hildegard pregava que a Criação e a vida eram essencialmente boas e santas, mas procurava em tudo um significado dentro do drama da Salvação Universal e uma utilidade prática para a melhoria da vida na Terra como um todo. Sua obra tenta mostrar que o homem desempenha um papel de grande relevância na ordem do mundo, a partir da união essencial e indissolúvel com o restante da natureza. Também reafirma a primazia absoluta do Criador, o Deus Triuno, a fonte, essência, substância, justificativa e fim de tudo.




Iluminura da cosmologia de ordem hierárquica segundo a monja


Já em sua cosmologia incluiu outras entidades em ordem hierarquizada, como os anjos e as virtudes em abstrato, o que de certa forma a aproximava da concepção platônica das ideias, que em sua época estava sendo redescoberta através dos escritos do Pseudo-Dionísio e de Escoto Erígena, tanto que sua concepção de anatomia esotérica do ser humano derivava em parte da filosofia clássica, por vê-lo composto por proporções específicas dos quatro elementos. Mas a herança cristã predominante tornava-se evidente na aceitação da ortodoxia católica em todos os aspectos fundamentais.



De seu ponto de vista, a forma humana era por excelência a Encarnação do Verbo divino. Assim os homens eram verdadeiras encarnações divinas, compostos por alma e corpo numa união originalmente harmoniosa e pura – apesar da alma decaída, que continuava poderosa e podia ser redimida pela graça de Cristo e pelo exercício das virtudes.




Hildegard escrevendo sob inspiração divina


Ela defendia que, como criatura dúplice, o homem de qualquer forma ocupava o lugar mais destacado na estrutura do cosmos e, graças à intimidade com a natureza, era capaz de alterar o meio ambiente, devido à própria inquietude, fato que poderia resultar em desastres. Ao falar dos elementos naturais, Hildegard pregava para que eles clamassem pela justiça divina contra a insensatez humana: "Todos os elementos e todas as criaturas choram em alta voz diante da profanação da natureza e da devoção maligna da humanidade ao seu modo de vida, de rebelião contra Deus, enquanto que a natureza irracional cumpre submissa às leis divinas. Eis o motivo pelo qual a natureza protesta tão amargamente contra a humanidade".


Seus escritos englobam inúmeras visões, que eram inconsistentes com o pensamento corrente de sua época. Mas, até então, apesar do florescimento das universidades e da ciência em geral, a inspiração divina na aquisição do verdadeiro conhecimento era ainda aceita como um fato de extrema importância quando considerado autêntico, como foi no seu caso.

Declarações de Hildegard
Ela dizia que todo o conhecimento que acumulara tinha procedido de fonte sobrenatural, apesar de se valer de muita observação e experimentalismo diretos, especialmente, quando estudava medicina e áreas correlatas. O dado mais original do seu pensamento se refere à forte tendência de analisar tudo numa perspectiva holística, dos quais derivou seu grande apelo aos movimentos ecológico, pacifista e naturalista, inclusive modernos.


Já as várias correntes distintas de pensamento, que adquiriram um corpo conceitual integrado, têm afinidade com o de pensadores contemporâneos, que não poderiam ser encaixados facilmente em uma única escola, como Alan Watts e Fritjof Capra. Tal como eles pensam na atualidade, para Hildegard também não fazia sentido analisar um fenômeno específico isoladamente. Era essencial ter uma visão do todo e dos múltiplos relacionamentos estabelecidos entre suas partes.


Ainda hoje, apesar de ela ter ocupado um lugar importante na cultura do século XII, é difícil determinar as fontes teóricas de sua cosmologia ou exegese. Colocando sua própria força na inspiração divina e dizendo-se iletrada, apenas em poucos casos citou outros autores em seus escritos. Além das fontes óbvias das Escrituras e da literatura patrística, produzidas entre outros por Santo Agostinho, São Gregório Magno e o venerável Beda, que eram canônicos e largamente conhecidos, tentativas de ligá-la a outros escritores têm se provado sempre conjeturais, especialmente no que tange aos clássicos e aos apócrifos. Mas, certamente, ela se inspirou na literatura beneditina, nos populares florilégios sobre os santos e em doutos contemporâneos, como Bernardo de Claraval e Hugo de São Vitor.


Sociedade Patriarcal
Talvez esse seja um dos objetos de estudos mais interessantes sobre a monja. Como ela se destacou em meio a uma sociedade que via as mulheres com olhos cheios de preconceito? Como se correspondeu em igualdade com papas, altos prelados e autoridades profanas? Como conseguiu muito do que quis? O segredo poderia se esconder no grande papel que ela mesma atribuía à mulher na ordem do universo?


Ao menos para última questão, a resposta pode ser sim, pois imagens femininas alegóricas investidas de grande poder abundam seus textos, entre eles a Fé, a Igreja e a Caridade. De acordo com as suas concepções, a figura da Sabedoria, por exemplo, recusava atribuir a culpa do pecado original a Eva.


O próprio Deus, em seu tempo invariavelmente considerado uma entidade masculina, é descrito por ela muitas vezes como uma mãe amamentando a Criação e velando por sua progênie. No entanto, é preciso notar que essa ênfase no feminino não a levou a uma negação do masculino, nem a um confronto direto com as definições patriarcais da ortodoxia dogmática do Cristianismo. Aparentemente, ela buscou uma harmonização entre os opostos, o que também fez parte de uma tendência de seu tempo se lembrarmos do crescimento do então culto Mariano, do qual ela mesma foi devota.


Além desses aspectos, ela também fez uma abordagem franca da sexualidade humana, analisando-a tanto sob a ótica teológica quanto fisiológica, terreno em que foi cuidadosa, devido à tendência condenatória do desejo e do prazer sensual em seu tempo, mostrando- os como funções essenciais do corpo e necessárias para o bem-estar humano no estágio evolutivo em que se encontrava. Se não bastasse, ela ainda traçou um painel histórico dos papeis sociais tradicionalmente atribuídos às mulheres – a maternidade ou a vida religiosa – para fundamentar que não via em nenhum deles um todo satisfatório, embora se mantivesse numa posição ambivalente a esse respeito, por se ver pressionada pelo próprio contexto.


A concepção do homem no universo, conforme Hildegard


Uma Mulher ou Um Mistério?
Considerada por pesquisadores modernos, uma mulher cuja trajetória de vida é extremamente difícil de ser analisada com suficiente objetividade para se avaliar sua real importância, já foi tida como uma anomalia bem sucedida, em virtude da alegação da origem divina de seus escritos.


Apesar dessa contestação, também não dá para desacreditar da elevadíssima estima que ela desfrutou entre seus contemporâneos, que a chamavam de “A Sibila do Reno”, a “Profetisa dos Teutões”, entre outros epítetos eloquentes, que a tornaram um dos ícones do movimento feminista do século 20, devido às muitas conquistas que obteve. Embora seja quase impossível relacioná-las, não há como deixar de destacar que Hildegard foi a primeira mulher a ser considerada uma autoridade em assuntos teológicos e a única do tempo medieval a quem foi concedido o direito de pregar a doutrina cristã em público. Ao mesmo tempo, foi autora do primeiro autossacro jamais escrito; a única dramaturga do século 12 que não permaneceu no anônimo e a única mulher medieval a ser lembrada como compositora de um extenso e qualificado corpo de obras musicais; ainda se tornou pioneira como autora, ao escrever sobre sexualidade e ginecologia de um ponto de vista feminino e a primeira santa a ter uma biografia oficial que inclui trechos autobiográficos.


Todas essas realizações são extraordinariamente notáveis, sobretudo, por ela ter sido uma mulher do século 12. Mas não só por isso. Sua obra, por exemplo, tem um elevado mérito próprio, independentemente do gênero, tanto que Hildegard foi comparada a sábios contemporâneos, como o polímata persa Avicena. Entretanto, se por um lado, ela foi uma pioneira e inovadora, em outros, manteve uma postura conservadora e até retrógrada.


Por isso, pesquisadores insistem que, somente um estudo contextualizado e detalhado de sua vida pode trazer à luz sua obra, que é considerada por uns como típica e rotineira e, por outros, como atípica e original. Porém, é certo que seu conservadorismo em tudo o que era essencial ao dogma cristão, face ao poder indisputável da Igreja daquele tempo, foi o que possibilitou sua ascensão a uma posição privilegiada e, mais tarde, ainda abriu caminho para que outras mulheres seguissem seu exemplo, sem serem imediatamente silenciadas.



Fonte:  portal Ciência & Vida