Homo sapiens: há 80 mil anos, uma das cinco espécies humanas
Atualmente, existem mais de 7 bilhões de pessoas vivendo na Terra. Nenhuma outra espécie exerceu tanta influência sobre o planeta como os humanos. Nós habitamos todos os continentes e reestruturamos a superfície da Terra e da atmosfera. Mas o nosso lugar nessa ordem hierárquica não foi sempre assim tão elevado. Uma nova evidência científica verteu mais luz sobre a luta pela sobrevivência dos nossos antepassados contra outros hominídeos.
O que aconteceu com os outros povos antigos? Voltando ao tempo em 80 mil anos, éramos uma entre as cerca de cinco espécies de humanos vagando pela Terra. A nossa própria espécie, os Homo sapiens (do Latim “homem sábio”), foi mais bem sucedida na África. No oeste da Eurásia, os Neandertais dominaram, enquanto descendentes dos Homo erectus podem ter vivido na Indonésia e os Homo floresiensis (apelidados de hobbits), habitaram a ilha de Flores, na Indonésia. Um dente incomum e um osso de um dedo descobertos numa caverna em Denisova, na Sibéria, em 2008, levaram os cientistas a acreditar ainda que uma outra população humana – os Denisovans – pode ter se difundido por toda a Ásia. Em algum ponto ao longo do caminho, os outros pereceram, deixando os Homo sapiens como os únicos sobreviventes. Mas o que fez de nós os vencedores nessa batalha pela sobrevivência? Foi obra do acaso ou as nossas habilidades e atributos desempenharam um papel crucial nessa vitória?
Um dos primeiros encontros entre as espécies humanas pode ter acontecido na Índia, antes de uma enorme erupção vulcânica. Há uns 74.000 anos, o supervulcão Toba, na ilha indonésia de Sumatra, entrou em erupção liberando 2.500 km3 de magma – quase o dobro do volume do Monte Everest. A erupção arremessou cinzas por mais de 2.000 quilômetros de distância, atingindo até o leste da Índia. As cinzas caíram como neve por mais de duas semanas, transformando o dia em noite, sufocando a vida vegetal e poluindo as fontes de água.
Cientistas já haviam especulado que a mudança climática global trazida pela erupção do Toba pode ter quase exterminado a raça humana, mas evidências arqueológicas na Índia mostram que isso está longe de ser verdade. Nenhum esqueleto jamais foi encontrado – o ambiente tropical úmido não é bom para a preservação de ossos –, mas o arqueólogo Mike Petraglia e sua equipe da Universidade de Oxford descobriram milhares de ferramentas de pedra enterradas sob as cinzas. O mesmo tipo de ferramentas de pedra continua a surgir a partir das camadas do solo acima das cinzas, provando que as pessoas que as fizeram sobreviveram ao desastre.
A habilidade com lanças foi vantagem do Homo sapiens contra os Neandertais
Duas espécies
Então, quem eram eles? Muitas destas ferramentas são machados de mão – simples e eficientes lâminas de corte que Petraglia acredita terem pertencido, provavelmente, a uma espécie como o Homo erectus. Mas algumas das ferramentas, incluindo pontas de lanças do tipo usado pelos Homo sapiens, levaram-no a especular que havia duas espécies de vida humana no leste da Índia antes da erupção do Toba.
Com base na análise cuidadosa das ferramentas e relacionando as datas das camadas de sedimento onde foram encontradas, Petraglia e sua equipe sugerem que os Homo sapiens chegaram ao leste da Índia há cerca de 78.000 anos, emigrando da África, através da Arábia, durante um período de clima favorável. Depois de sua chegada, as simples ferramentas pertencentes aos Homo erectus se reduziram e, eventualmente, desapareceram por completo.“Nós acreditamos que osHomo sapiens tinham uma tecnologia de caça mais eficiente, o que pode ter dado a eles uma vantagem “, diz Petraglia. “Não é muito claro se a erupção do Toba também exerceu um papel na extinção de espécies como o Homo erectus .”Cerca de 45.000 anos mais tarde, uma outra luta pela sobrevivência estava em andamento. Desta vez o local era a Europa e os protagonistas eram os nossos antepassados e os Neandertais.
Inicialmente, os Homo sapiens e os Neandertais não tinham razão alguma para competir, mas depois o clima da Europa entrou numa fase fria e seca. “As populações de Neandertais e Homo sapiens tiveram de recuar para refúgios (bolsões de terras habitáveis) e isso aumentou a competição entre os dois grupos”, explica Chris Stringer, líder de pesquisa em Origens do Homem no Museu de História Natural, em Londres e autor de A Origem das nossas espécies (Allen Lane, 2011).
Como as duas espécies se enfrentaram? Ambas eram fisicamente mais fortes e atarracadas do que a média dos seres humanos atuais, mas os Neandertais eram particularmente robustos. “Seus esqueletos mostram que eles tinham ombros largos e pescoços grossos “, diz Stringer.
Nossos ancestrais, provavelmente, não teriam se saído bem em uma briga no braço com um Neandertal, mas eles podem ter sido hábeis em atirar lanças. Mesmo que as duas espécies não tenham se engajado em um combate direto, esta habilidade de matar à distância pode ter dado ao Homo sapiens uma vantagem na caça. “Homo sapiens podem ter usado essa capacidade para matar a partir de uma certa distância, com menos perigo e usando relativamente pouca energia”, explica Stringer.
Esqueletos de Neandertais e de Homo sapiens foram encontrados em regiões de clima frio, vivendo ao lado de mamutes na Era do Gelo da Grã-Bretanha, por exemplo. O grande tamanho dos corpos dos Neandertais os ajudava a mantê-los aquecidos, mas isso teve um custo. “Comparado com os Homo sapiens vivendo num mesmo ambiente, Neandertais teriam a necessidade de consumir várias centenas de calorias a mais por dia, o que os tornava muito mais dependentes de animais de caça, como veados e cavalos”, diz Stringer.
A análise química dos ossos dos Neandertais e de Homo sapiens apoia essa teoria, mostrando que os Neandertais eram carnívoros dominantes, enquanto nossos antepassados usavam uma miscelânea de recursos, incluindo caças menores e peixes.
Se falarmos em manter-se aquecidos, os Homo sapiens tinham outro truque na manga: tecelagem e costura. Arqueólogos encontraram agulhas simples feitas de marfim e ossos ao lado de Homo sapiens que datam de 35.000 anos atrás.
“Utilizando esta tecnologia poderíamos usar peles de animais para fazer barracas, agasalhos e botas de pele”, diz Stringer. “O mais importante é que podíamos manter nossos bebês aquecidos, o que pode ter nos dado uma vantagem sobre os Neandertais na sobrevivência diante das muitas flutuações climáticas. Em contraste, os Neandertais nunca pareceram ser mestres em habilidades de costura. Em vez disso, dependiam
Duas formas de pensar
Algumas dessas diferenças de comportamento e tecnologia podem ter surgido porque as duas espécies pensavam de maneiras diferentes. Comparando os formatos dos crânios, arqueólogos provaram que os Neandertais tinham cérebros de tamanhos semelhantes aos dos Homo sapiens , mas com um lóbulo occipital maior. Esta região, localizada na parte de trás do cérebro, está associada com o processamento visual, o que pode significar que os Neandertais tinham uma visão mais aguçada e eram mais capazes de distinguir objetos em lugares mal iluminados, como florestas escuras.
Os Homo sapiens , no entanto, tinham lobos temporais mais desenvolvidos (região ao lado do cérebro associada à escuta, à língua e memória de longo prazo). “Nós acreditamos que os Homo sapiens tinham um idioma significativamente mais complexo do que o dos Neandertais e foram capazes de compreender e discutir conceitos como passado e futuro distantes”, diz Stringer.
Além disso, podemos ter sido capazes de falar mais cedo. Nos Homo sapiens , o trato respiratório superior era mais flexionado do que nos Neandertais, tornando-o mais eficiente na criação de uma grande variedade de sons rapidamente. Penny Spikins, um arqueólogo da Universidade de York, Reino Unido, sugeriu recentemente que os Homo sapiens também tiveram uma maior diversidade de tipos de cérebros do que os Neandertais. “Nossa pesquisa indica que parte do motivo dosHomo sapiens terem tido tanto sucesso é porque eles estavam dispostos a incluir pessoas com ‘diferentes’ mentes em sua sociedade - por exemplo, pessoas com autismo ou esquizofrenia”, explica ela.
Uma análise recente do genoma do Neandertal apoia a “teoria das mentes diversas” de Spikins. Foi revelado que os Neandertais não carregavam os genes associados com o autismo ou esquizofrenia. “Parece razoável concluir que os Neandertais eram muito mais semelhantes entre si geneticamente e não estavam preparados para acomodar pessoas diferentes”, diz Spikins.
Ao serem tolerantes com traços aparentemente prejudiciais, Homo sapiens adquiriram competências especializadas e uma população diversa que teve melhores condições de adaptação – e exploração – de diferentes ambientes. Por exemplo, pessoas com formas leves de autismo são muitas vezes altamente qualificadas em uma atividade em particular.
Não é difícil perceber que características como atenção aos detalhes, memória excepcional, sede de conhecimento e hiperfoco podem levar a conquistas significativas em certos domínios”, diz Spikins. Ferramentas de maior precisão, novas tecnologias de caça e o desenvolvimento de uma comunicação simbólica podem, juntas, terem incentivado as pessoas a “pensar fora da caixa”. Enquanto isso, pessoas dispostas a levar uma existência isolada podem ter se tornado exploradores, descobrindo novas terras e recursos.Maneiras incomuns de pensamento poderiam também ter ajudado as pessoas a desenvolverem novas formas de resolver as tensões sociais. “Xamanismo, música e dança ajudaram as pessoas a se conectarem”, diz Spikin.
Igualdade sexual
Por volta de 30 mil anos atrás, muitos desses talentos e traços eram bem estabelecidos nas sociedades formadas por Homo sapiens, mas não tinham sido desenvolvidos nas comunidades de Neandertais. “Vemos tipos semelhantes de lesões nos esqueletos de machos e fêmeas de Neandertais, o que implica que não havia nenhuma divisão de trabalho ou funções especializadas”, diz Spikins.
Tolerância e espírito aberto, bem como uma sede para a exploração, deram aos Homo sapiens outra importante vantagem sobre os Neandertais. Objetos como miçangas de conchas e ferramentas de pedras, descobertos a muitos quilômetros de suas fontes, mostram que os nossos antepassados negociavam por grandes distâncias, trocando materiais úteis e compartilhando ideias e conhecimentos. Por contraste, Neandertais tendiam a ficar sozinhos, vivendo em pequenos grupos. Eles mantinham os recursos por perto, talvez deixando de descobrir novos materiais, tecnologias ou ambientes externos a seu próprio território.
No entanto, os Neandertais eram uma espécie muito bem sucedida, que dominou a paisagem europeia por 300 mil anos. Ainda assim, alguns poucos milhares de anos após a chegada dos Homo sapiens, a sua população despencou. Eles desapareceram definitivamente do cenário há cerca de 30 mil anos. O seu último refúgio conhecido foi o sul da Península Ibérica.
Stringer acredita que, em muitos aspectos, os Neandertais foram apenas azarados, tendo vivido no lugar errado e na hora errada. “Eles tiveram que competir com os Homo sapiens durante uma fase de clima muito instável em toda a Europa “, diz ele. “Durante cada rápida alteração climática, eles podem ter sofrido perdas maiores do que as dos Homo sapiens e, assim, foram gradualmente solapados. Se o clima tivesse se mantido estável, eles poderiam ainda estar por aqui.”Após os Neandertais terem perecido, acredita-se que tenham restado apenas duas espécies de humanos: Homo sapiens e Homo floresiensis – o povo Hobbit. Como seu apelido sugere, essas pessoas tinham corpos pequenos – apenas um pouco mais de 1 metro de altura – e cérebros pequenos. No entanto, se comportavam de uma forma inteligente. Eles usavam ferramentas de pedra, o que indica caça cooperativa e talvez até tenham usado fogo para cozinhar.
Eles poderiam ainda estar vivos hoje se não fosse por uma grande erupção vulcânica há 17.000 anos. Ela devastou a Ilha das Flores, acabando com a sua vegetação e o Stegodon – uma espécie de elefante-anão que pode ter sido a base da dieta dos hobbits. “Até agora não há nenhuma evidência de qualquer competição com os Homo sapiens. Talvez eles simplesmente não tenham conseguido sobreviver às consequências da erupção”, diz Stringer.
No entanto, parece que nem todos os nossos companheiros de espécie humana desapareceram completamente. No ano passado, Svante Pääbo e seus colegas do Instituto de Antropologia Evolutiva Max Planck, em Leipzig, analisaram ossos e sequenciaram o genoma do Neandertal. Eles descobriram que todos os seres humanos com ascendência fora da África tinham em comum cerca de 2,5% do seu DNA com o dos Neandertais. Em 2011, Pääbo e seus colegas realizaram a mesma análise sobre o osso de dedo encontrado na caverna Denisova, na Sibéria. Eles mostraram que o Denisovans compartilhavam cerca de 5% do seu material genético com os atuais melanésios (pessoas que vivem nas ilhas do Sudeste Asiático).“Tanto os Neandertais quanto os Denisovans seriam capazes de cruzar e ter descendentes férteis com os seres humanos modernos”, diz Pääbo. “De certa forma, eles continuam a viver em nós, ainda hoje”.
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