27.8.08

Os relatos dos viajantes como fonte para o estudo da história

Autor: Heloisa Jochims Reichel
Instituição: Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS – RS- BRASIL
Abstract: Os depoimentos de viajantes, com explicações e aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e mais enriquecida compreensão do passado. Temos que cuidar, porém, para não cairmos na armadilha de aceitar as descrições e informações ali presentes como sendo a própria e única realidade. Elas se constituem de representações, reinvenções de realidades, produzidas a partir da visão de um sujeito. Por outro lado, os relatos dos viajantes se constituem em poderes capazes de atuar na mentalidade e na visão de mundo de uma sociedade, transformando o processo histórico. Com este sentido, as representações acerca do real, ou o real pensado, podem atuar como causa de práticas sociais. Nesta comunicação, serão analisadas estas duas formas de abordar teoricamente a literatura de viagem, tomando-se, como referência, o relato de alguns viajantes que participaram da “segunda descoberta da América” na Região Platina, nos inícios do século XIX.
TEXTO DA COMUNICAÇÃO
Introdução
Os depoimentos dos viajantes, atualmente, vêm sendo objeto de estudo de especialistas de vários campos do conhecimento, dentre os quais se destacam os da história, da crítica literária e da antropologia. Na historiografia latino-americana em especial, desde há muito, eles são considerados fonte importante de pesquisa, na medida em que oferecem descrições pormenorizadas sobre a economia, sociedade e cultura da América Latina. Na das últimas décadas, entretanto, as obras dos viajantes vêm sendo especialmente citadas, tendo em vista oferecerem subsídios para algumas temáticas que interessam aos historiadores, como o cotidiano, os estudos de gênero, os de grupos étnicos, etc1.
A renovada valorização dos relatos dos viajantes pela historiografia atual deve-se, também, ao fato dos mesmos servirem à utilização de uma categoria de análise muito utilizada na atualidade para a compreensão do que venha a ser a realidade histórica. Refiro -me à categoria representação que, por sua vez articula-se às de imaginário e simbólico. Os Por sua importância como fonte à produção historiográfica recente, os relatos de viajantes têm sido reproduzidos parcial ou integralmente em coletâneas, levantamentos bibliográficos, traduções e/ou edições sempre renovadas. Como exemplo, temos a lembrar a re-edição de textos clássicos de viajantes no Prata, como Viajes por la América Meridional de Félix de Azara, cujas edições anteriores datavam de 1808, 1923 e 1969 e como El Lazarillo de ciegos caminantes, de Concolorcorvo, publicado pela primeira vez em 1770 (?) e cuja última edição, de 1972, se encontrava esgotada.
1 progressos alcançados pela ciência em relação ao processo cognitivo, levou as ciências humanas a reconhecer que o conhecimento do real concreto se faz através da construção de imagens mentais, produzidas através do intelecto ou dos sentidos. Estas imagens mentais se constituem em representações do real que, quando acionadas para a compreensão do real concreto, passam a integrar a própria realidade. Esta, pois, que é decodificada individualmente através de representações mentais, apresenta uma pluralidade de significados, os quais se externalizam, principalmente, através do discurso.
Os depoimentos dos viajantes, com explicações e aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e mais enriquecida compreensão do passado. Temos que cuidar, porém, para não se cairmos na armadilha de aceitarmos as suas descrições e informações como sendo a própria e única realidade. Elas se constituem de representações, reinvenções de realidades, produzidas a partir da visão de um sujeito. São imagens que se constituem em representações do real, elaboradas a partir de componentes ideológicos de pessoas dotadas de equipamentos culturais próprios e que trazem um patrimônio anterior que condiciona o modo de observar e entender o empírico. Transportando esta condição para a temática desta mesa, Antonio Candido (in – LEITE, Ilka Boaventura. 1996: p.1.) alerta para o significado de visão do outro que as representações de viajantes europeus representam. Diz ele: “o europeu que chega se comporta geralmente como se fosse um foco absoluto. Ele detém conceitos, preconceitos e noções, mediante os quais vai organizar o mundo novo, e que é tão diverso do seu.”
Para utilizarmos as representações dos viajantes como fonte histórica, é necessário, portanto, decifrar o seu significado, articulando texto e contexto. Chartier (1990) tem trabalhado as representações como produto de vivências sociais, as quais geram o contexto em que as imagens são produzidas. Nesta linha de raciocínio, ele indica o caminho para decifrar a construção de um sentido num processo determinado: o cruzamento entre práticas sociais e historicamente diferenciadas com as representações feitas. Como bem acentua o autor, as clivagens culturais não se organizam só através do recorte social, ocorrendo também configurações derivadas dos fatores sexo, idade, tradição cultural, época etc.
1. A segunda descoberta da América: o contexto dos viajantes Na busca da articulação de texto e contexto para a compreensão das representações construídas, vamos analisar o mundo econômico, social e cultural em que viviam estes viajantes. Com este sentido, as representações por eles construídas são vistas como efeito das suas práticas sociais. Focalizaremos o relato de dois viajantes franceses – Alcides D`Orbigny e Arsène Isabelle - que visitaram a América Platina nas primeiras décadas doséculo XIX. A escolha destes viajantes se deveu ao fato de terem estado na mesma década visitando a América e, também, porque estiveram em terras do Rio Grande do Sul, da Argentina e do Uruguai. Outros motivos foram: terem atividades profissionais semelhantes, ou seja ambos eram naturalistas e nacionalidade comum 2. A denominação de segunda descoberta da América indica que um novo olhar incidia sobre o continente americano. Como vimos, no período da conquista, grande foi a atenção e a curiosidade que o continente despertou nos europeus. Todas as expedições exploradoras, de caráter náutico ou geográfico, de ação missionária ou colonizadora eram integradas por cronistas, funcionários da Coroa ou particulares que tinham a missão de descrever e dar a conhecer o território e os povos conquistados. Passados estes momentos iniciais e restando pouco a desbravar nas terras desconhecidas, os aventureiros cronistas deixaram de realizar as suas viagens e o interesse por seus relatos, entre os leitores europeus, foi diminuindo. A atividade exploradora na América, do século XVIII em diante, caracterizou-se, ao contrário, por um marcado caráter científico. Era a época do racionalismo e do cientificismo, que buscavam o conhecimento da realidade através da observação do empírico, da natureza. A elaboração do texto e a forma como foram apresentadas as representações também estiveram influenciados pelo movimento romântico que se estruturava no período. A noção de natureza e seus corolários – a bondade natural, a pureza da vida em natureza, a superioridade da inspiração natural, primitiva, popular – estão presentes nas representações construídas pelos viajantes. Nos seus relatos, é comum o culto da natureza, considerada, pelos românticos, como lugar de refúgio, puro, não contaminado pela sociedade, lugar de cura física e espiritual. Relacionada com este culto foi a idéia do bom selvagem, do homem simples e bom em estado de natureza, que Rousseau exprimiu. 2
. Deu-se preferência a viajantes não ingleses, já que a maior parte dos estudos existentes tem se detido nos Articulado com o pensamento da sua época, Arsène Isabelle considerou o viajante como um historiador que se preocupa em relatar o homem natural, em buscar a essência da natureza humana. Escreveu: Um viajante – disse Chateaubriand – é uma espécie de historiador. Seu dever é contar o que viu e o que ouviu. Não deve inventar, mas também não deve omitir....Não me será possível completar as descrições físicas sem empregar algumas palavras ‘ técnicas’, mas podeis ficar tranqüilos que só usarei as que conheço. Lembrai-vos que estaremos num laboratório da natureza e que, ali, tudo é natureza, nada mais que natureza... Os próprios homens são naturais. A civilização é para eles um disfarce que gostam de exibir, mas do qual se despojam quando estão em ‘família’. (p.33) As ciências naturais, assim, se organizaram sobre a base da observação e do experimento. Instalaram-se jardins botânicos, gabinetes de história natural, laboratórios de experimentação, observatórios astronômicos. As academias científicas promoveram investigações e financiaram, muitas vezes, expedições científicas de estudiosos europeus que, após as observações de viagem, tornaram-se especialistas. Alcides D’ Orbigny, um dos dois viajantes que escolhemos para analisar, se enquadra nesta condição. Aos 23 anos, foi indicado pelo Museu de História Natural de Paris para visitar, explorar e estudar a fauna e a flora da América do Sul. Após viajar por 8 anos por terras do Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Peru e Bolívia, voltou ao seu país natal em 1834, organizou seus documentos e registros, os classificou e, em 1839, publicou o primeiro dos 10 tomos de seu livro Viagem a América Meridional. Como resultado desta expedição, para a qual denominou-se de naturalista viajante, D’Orbigny passou a ser reconhecido como grande especialista, tendo ocupado o cargo de vice-presidente da Sociedade Geológica da França e recebido o título de Cavaleiro da Ordem Real da Legião de Honra, por parte do governo francês. Foi autor, também, da obra O homem americano. desta nacionalidade que foram, em bom número, comerciantes e diplomatas. Nos dois primeiros tomos e na metade do terceiro de seu livro Viagem à América Meridional, dedicou-se a estudar o homem da América, a estudar a origem da população nativa e a relatar a história das nações que recentemente haviam se formado. O que antes fizera Felix de Azara na região do pampa e Alejandro de Humboldt na parte norte da América do Sul, D’ Orbigny o realiza em terras de guarani, de araucanos, calchaqués e quechuas. Nos demais volumes, estuda e classifica 160 mamíferos, 115 répteis, 166 peixes, 980 moluscos, 5000 insetos e crustáceos, 3000 plantas e aporta vários conhecimentos à geologia, à paleontologia e à etnografia. Louis-Frédèric Arsène de Isabelle, o outro viajante francês que focalizamos também era naturalista, tendo vindo para a América às suas próprias custas. Em 1830, viajou para a região do Prata com o desejo de descrever os aspectos geográficos, geológicos, zoológicos e botânicos desta região. Esteve primeiro no Uruguai e depois dirigiu-se para Buenos Aires. Nesta cidade, perdeu todo seu capital em maus negócios financeiros, sendo obrigado a abrir uma pequena indústria textil para depois seguir com sua expedição pelo interior. Sem alcançar a prosperidade almejada, deslocou-se para o Uruguai, cruzando pelas terras rio- grandenses em 1833 e 1834. Retornou à França em 1835, ocasião em que publicou seus relatos de viagem na obra Voyage à Buenos Ayres et à Porto Alegre3. Posteriormente, retornou à América, radicando-se em Montevideo, cidade onde viveu grande parte de sua vida, foi agente consular, colaborou com o jornal Patriotte Français, mantido por um grupo de exilados franceses e estimulou o comércio entre França e Uruguai. Uma das preocupações centrais dos viajantes dos séculos XVIII e XIX era conhecer e aceitar o diferente. Criticando o etnocentrismo clássico, que conceituava o homem e o mundo a partir dos parâmetros europeus e que, por decorrência, denominou o habitante da América de selvagem, Rousseau afirmara em relação aos viajantes da fase anterior ao cientificismo: Há trezentos ou quatrocentos anos que os habitantes da Europa inundam as outras partes do mundo e publicam novos relatos e narrativas de viagem, e estou persuadido de que os únicos homens que conhecemos são os próprios europeus”.( apud Todorov, T.. 1993:.p.30) Para ele, o viajante deveria ser um homem instruído, curioso em descobrir a especificidade de cada povo e de cada lugar, sendo que, para isso, deveria se despir do etnocentrismo europeu. Os viajantes buscavam conhecer e dar a conhecer os lugares estranhos, as terras selvagens, ricas de pitoresco, ou simplesmente de diferentes fisionomia e costumes. O movimento romântico, por sua vez, também valorizava o diferente, o exótico. Por isso, foi o período em que estiveram em voga, na pintura e na literatura, as paisagens, as etnias e as culturas consideradas exóticas. D´Orbigny ao desembarcar primeiramente no Rio de Janeiro quando viajou à América, preocupou-se em descrever o pitoresco do colorido da sua população e sua natureza exótica, através destas imagens: “ O que mais me surpreendeu ao entrar na cidade foi a grande quantidade de homens de cor, comparativamente a de brancos. É o que suponho há de estranhar mais a todo europeu que desembarque no Brasil. A vista acostumada ao espetáculo de uma população de cor, por assim dizê-lo, uniforme, se habitua com dificuldade a esta mescla de tintas de todos os tons possíveis, do negro ao branco, passando pelo amarelo e o moreno (p.31)... Meu primeiro passeio foi realizado pelo lado do Corcovado....Choças de negros, semeadas pela montanha em pitoresca desordem, elegantes vivendas rodeadas de campos cultivados... Esta paisagem se estende pelo horizonte até o ponto que começam as selvas virgens. Alí toma a natureza um caráter mais agreste e mediante o pensamento é possível retroceder-se à idade primitiva deste lindo país... cheguei a um lugar em que conclui o aqueduto e a água, caindo de pedra em pedra, na selva virgem, forma um pequeno estanque natural que alimenta o próprio aqueduto. Seria preciso ter muito pouca sensibilidade para não emocionar-se diante de tal espetáculo. As diversas árvores entrecuzam sua ramagem Arsène Isabelle escreveu outras duas obras: Emigração e colonização na Província brasileira do Rio Grande do Sul, na República Oriental do Uruguai e em toda a bacia do Prata, editado em Montevideo em 1850 e Notas comerciais e de muitos outros escritos sobre Montevideo. 3 por cima da água que salta da cascata sobre pedras graníticas, e parecem querer preservá-la, de tal modo, dos raios solares e manter-lhe a frecura tão preciosa ao viajante, titubeante sob o peso do dia.” ( p.32) Arsène Isabelle, na introdução de seu livro, também denota estar imbuído desta sensibilidade para com o novo, o diferente que motivava o viajante a descobrir uma nova América. Diz ele: “Tudo será novo ao redor de nós: nada de monumentos antigos a exumar, nada de lembranças gloriosas presas a esta terra quase virgem. No máximo exumaremos um fóssil e, então, quanta meditação, quanta poesia”. (p.33) Ao longo do século XVIII, a adoção do fisiocracismo na economia mundial intensificara a agricultura e o comércio marítimo na América. Na Holanda, França e Inglaterra, bem como Portugal e Espanha, se constituíram companhias para explorar intensivamente a produção colonial, o que exigia um minucioso conhecimento das condições geográficas, climatéricas e demográficas dos territórios ultramarinos. Também por estes motivos, as viagens de exploração e estudo dos naturalistas se sucederam e a América voltou a ser percorrida com a mesma intensidade que no século XVI. Bouganville, Malaspina, Antonio de Ulloa e Felix de Azara são alguns dos estudiosos que percorreram o continente, desvendando novos conhecimentos de botânica, zoologia e geografia. Encerra o século um dos viajantes científicos mais notáveis, o alemão Alexandre de Humboldt, que fez do Peru, das Antilhas e do México o campo predileto de suas observações. A emancipação dos países americanos despertou ainda mais o interesse dos viajantes europeus pelo continente, principalmente por parte dos não ibéricos. Afora os cientistas, um bom número de comerciantes, diplomatas, artistas e buscaram descrever as condições sociais, políticas e econômicas que encontravam nos novos Estados independentes, bem como as possibilidades de ampliar o comércio dos mesmos com seus países de origem. São deste período, relatos de viagens que analisamos e também o de Darwin, o de Auguste Saint-Hillaire e o de Debret, dentre outros. Vinculado a estes objetivos, os relatos destacaram o sistema de produção de alguns produtos que
encontravam mercado na Europa. No caso da região platina, foram inúmeras as descrições realizadas sobre a sua riqueza pecuária, sobre as estâncias e o trabalho que nelas se realizava. 4 As possibilidades comerciais eram também objeto das descrições dos viajantes, em especial de Arsène Isabelle que dedicou sua obra aos “negociantes que constituem o comércio do Havre”.5 Sobre o Rio Grande do Sul, escreveu Em tudo o que se tem publicado sobre o Brasil nada vi que pudesse chamar a atenção dos europeus e especialmente dos franceses sobre a importância da província do Rio Grande do Sul, ou de São Pedro. O sr. Auguste Saint-Hilaire, viajante erudito e consciencioso, fez dela um bom esboço, mas não se estendeu, nem podia fazê-lo, sobre o interesse comercial que oferecem novas cidades e novos portos, os quais, fundados há poucos anos, estão crescendo rapidamente, como consequência natural da afluência de estrangeiros e mesmo de brasileiros das outras províncias do Império, atraídos em massa pelas doçuras de um clima saudável e temperado reunidas aos encantos e à facilidade da vida agrícola....esta bela e rica Província marcha enfim apesar de tantos obstáculos, para um estado de prosperidade muito superior ao das outras províncias brasileiras e só rivalizado pelo da sua vizinha, a Banda Oriental.” (p. 31/32) A partir do século XVIII, o homem passou a reconhecer como característica
humana, além da racionalidade, a sua sociabilidade. Ao analisar esta dimensão humana, Todorov afirma: “A sociabilidade, portanto, implica capacidade de submissão, assim como pressupõe a existência de leis, de uma ordem estabelecida, de usos constantes, de costumes fixos. Ao mesmo tempo, a sociabilidade (...) é a condição indispensável para a multiplicação da espécie, e basta saber o número de habitantes para se poder concluir sobre o alto grau de sociabilidade, portanto, de sua superioridade: quantidade implica qualidade. ...Mas é também à presença da sociedade que o homem deve o progresso das técnicas e dos utensílios, inclusive dos instrumentos intelectuais que são a língua e a escrita.(op. cit. P.114-115)
A partir da racionalidade e da sociabilidade, solidárias entre si, instala-se a oposição civilização e barbárie. Buffon, ao final do século XVIII, hierarquiza a espécie humana, construindo uma classificação que vai desde os mais civilizados, ou seja as sociedades da Europa setentrional, logo abaixo os outros europeus, depois as populações da Ásia e da África e, por último, os selvagens americanos. Sendo assim, nenhum viajante europeu que visitava a América deixava de trazer consigo a representação da inferioridade da natureza É interessante referir que os relatos serepetiam, o que denota terem, os viajantes, conhecimento dos depoimentos de outros que lhe antecederam. As descrições de Felix de Azara foram as que serviram, na maioria das vezes, de matriz a esses relatos. 4 5 Arsène Isabelle era natural do Havre, região portuária da França que comerciava com os quatro continentes americana. De uma maneira geral, os índios eram descritos como “ nada industriosos, inclinados naturalmente à preguiça”. (Isabelle, p.213) Nesse sentido, ilustramos com as palavras de Arsène Isabelle quando comparou os colonos imigrantes alemães que se radicaram no Rio Grande do Sul a partir de 1824, com os platinos: “Depois de termos subido e descido várias vezes, avistamos enfim, na volta de um caminho coberto, a vila de São Leopoldo, situada no meio de uma planície baixa, que pode ter duas léguas de circunferência. Pensamos estar na Alemanha. Não pude deixar de experimentar, à vista dessa população européia, um sentimento de admiração, pois fui imediatamente surpreendido pelo contraste que me ofereciam esses lugares cultivados com cuidado, esses caminhos abertos penosamente através das colinas, dos montes e das florestas, essas pequenas propriedades cercadas de fossos profundos ou de sebes vias, essa atividade dos agricultores e operários, rivalizando, de modo invejável, pela prosperidade comum, com o abandono absoluto no qual os brasileiros deixam suas terras, o mau estado de seus caminhos, suas choupanas em ruínas, enfim, essa falta de indústr4ia, esse espírito perdulário e destruidor que o caracteriza, assim como aos argentinos.” (p.287/88) 2. A dicotomia campo e cidade nos relatos dos viajantes: o texto como causa de práticas sociais.
A partir do reconhecimento da importância das representações no processo cognitivo, as imagens, os símbolos e os discursos foram reconhecidos como elementos que integram o real, deixando de ser vistos apenas como acessórios da vida material. Eles se constituem em poderes capazes de atuar na mentalidade e na visão de mundo de uma sociedade, transformando o processo histórico. Com este sentido, as representações, o real pensado, passam a ser causa de práticas sociais e, como tal, a fazer parte do processo histórico. Sobre isso, alertou Roberto da Matta: “ (...) quando deixamos de perceber quando as idéias passam a ser atores em certas situações sociais, seja porque atuam para desencadear a ação, seja para impedir certas condutas, deixamos de penetrar no mundo social propriamente dito e, assim fazendo, corremos o risco de cair na postura teórico-formal e, com ela, no plano abstrato das determinações.” ( DA MATTA, Roberto. 1997 p.62)
A partir desta forma de abordar as representações, vamos selecionar algumas das representações que D´Orbigny e Arsène Isabelle construíram acerca da vida rural e da vida urbana na região platina. Nossa intenção é mostrar que seus relatos, que foram lidos intensamente pelos homens e mulheres desta sociedade, influiram decisivamente nas representações que os platinos vão construir acerca destes dois mundos. Em outras palavras, consideramos que, nos relatos dos viajantes, em parte, se encontram as razões para a dicotomia civilização x barbárie estar relacionada, na América, à de campo e cidade. Norbert Elias, em sua obra O processo civilizatório, analisa os diferentes entendimentos que o têrmo civilização tinha para os europeus do século XIX.. Segundo Elias, civilização “expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesma. (...). Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo, e muito mais. (ELIAS, Norbert. 1994: p. 23) Acreditando que essa palavra não teve o mesmo significado em todas as sociedades européias do século XVIII, Elias considera que, para os franceses, nacionalidade dos viajantes aqui analisados, o conceito de homem civilizado estava intimamente relacionado com o comportamento social dos indivíduos, em especial da burguesia. O conceito civilização foi inicialmente um instrumento da classe média no conflito social interno da sociedade francesa e, com a ascensão da burguesia ao poder, esta procurou reformar a falsa civilização da nobreza, que se baseava na polidez e nas boas maneiras, em uma civilização boa e autêntica que se situava entre a barbárie e a civilização. Cabia aos governos executar esta tarefa que, segundo Elias, no entanto, permanecia “ dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado de cima, e que não opõe ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou conceito absolutamente novos, mas em vez disso, parte da ordem existente, desejando melhorá-la... (op. Cit. p.60) Na América platina, a civilização foi discursivamente relacionada com a vida urbana e a barbárie com a rural na obra clássica de Sarmiento, Facundo o civilización y barbárie en las pampas argentinas (..). Diz ele: -“ Facundo não morreu; está vivo nas tradições populares, na política e revoluções argentinas; em Rosas, seu herdeiro, seu complemento: sua alma passou a este molde, mais acabado, mais perfeito... A natureza campestre,colonial e bárbara tranformou-se nesta metamorfosis em arte, em sistema, em política... Facundo, provinciano, bárbaro, valente, audaz foi substituído por Rosas, filho da culta Buenos Aires sem sê- lo... “ (p.7)
-“ Em sua embocadura estão situadas duas cidades: Montevideo e Buenos Aires, colhendo hoje,
alternadamente, as vantagens de sua invejável posição. Buenos Aires está chamada a ser a cidade mais gigentesca de ambas as Américas... seria já a Babilônia americana se o espírito do pampa não tivesse soprado sobre ela e se não afogasse em suas fontes o tributo de riqueza que os rios e as províncias têm que levar-lhe sempre. Ela somente, na vasta extensão argentina, está em contato com as nações européias; ela só explora as vantagens do comércio estrangeiro; ela só tem poder e rendas. Em vão se pediu às províncias que lhes deixe passar um pouco de civilização, de indústria e de população européia: uma política estúpida e colonial se fez surda a estes clamores. Porém as províncias vingaram-se, mandando-lhe em Rosas, muito e demasiado da barbárie que a elas lhes sobrava.” (p.25) -“ A cidade é o centro da civilização argentina, espanhola, européia; alí estão as oficinas de arte, as lojas de comércio, as escolas e colégios, os tribunais, tudo o quecaracteriza, enfim, ao povos cultos. O homem da cidade veste o traje europeu, vive da vida civilizada, tal como a conhecemos em todas as partes: alí estão as leis, as idéias de progresso, os meios de instrução, alguma organização municipal, o governo regular etc. Saindo do recinto da cidade, tudo muda de aspecto: o homem do campo usa outro traje, que chamarei de americano, por ser comum a todos os pueblos; seus hábitos de vida são diversos; suas necessidades, peculiares e limitadas, parecem duas sociedades distintas, dois povos estranhos um ao outro. (p.31) A representação construída por este intelectual portenho em seu texto foi, em muito, influenciada pelas representações que os viajantes haviam feito e faziam das condições de vida e do perfil do habitante do campo e da cidade. Comparando os discursos de ambos, reproduzimos alguns trechos das obras dos naturalistas franceses aqui focalizados: Isabelle- - “ Os ´gaúchos` ou habitantes do campo são, em relação a Buenos Aires, o que são os tártaros em relação à China ou os beduínos em relação a Argel. Foi um chefe gaúcho que triunfou do partido de Lavalle e serão os gaúchos que dominarão sempre a cidade, opondo-se a toda inovação útil ao país, até que se ponha em prática o plano de Rivadávia, que consistia em favorecer aos estrangeiros e induzí-los a formar colonias no interior (...) agora, percebo que estou mais próximo dos ´pampas` que da praça da Vitória”. (p.94) -“ Pouco direi aqui sobre os habitantes do campo ou os gaúchos que, em muitos aspectos, podem ser classificados entre os ´beduíbnos`de Argel, os ´sertanejos`e ´mamelucos`do Brasil e, mesmo, ´zambos` da Colômbia . (p. 137) -“ Com exceção do uso do pente, as mulheres de Buenos Aires e de Montevideu seguem as modas francesas. Há um grande número de modistas e de costureiras dessa nacionalidade, e os jornais de moda de Paris circulam em todos os `boudoirs` (ou o que faz as vezes de `boudoirs`) das portenhas.... Os homens, bem proporcionados, de excelentes maneiras como as mulheres, seguem indistintamente as modas francesas e inglesas. Há um grande número de alfaiates das duas nacionalidades, de sapateiros e cabelereiros, que fazem ótimos negócios”. (p.157-) -“Aqui começa uma série de habitações esparsas, de aldeias e de vilas, que foram povoadas por índios guarani, trazidos dos ´pueblos` das missões durante a guerra com o Brasil.... Desgraçadamente, porém, esses índios nada industriosos, inclinados naturalmente à preguiça, foram abandonados à própria sorte.” (p. 214) D´Orbigny- -“ A cidade de Montevideu tinha um ar de riqueza, de vida e prosperidade comercial. (...) O comércio brindou, mediante comunicações freqüentes entre os habitantes de todos os países, um ar de soltura e amabilidade de modos aos cidadãos de Montevideu, dotados, por outra parte, como todos os argentinos, de muita vivacidade e excelente aspecto. Os homens são bem formados, com boa figura; as mulheres, bonitas, amáveis e muito espiriruais... (p.66) -“ ... A cabana constava de duas pecinhas, das quais uma servia, primeiramente, de cozinha, logo de comedor e também de dormitório, pois percebemos uns couros vacunos, estendidos no chão, em um canto, e sobre os quais sem dúvida a família se recuperava das tarefas diárias. Como ornamento, estavam dependurados nas paredes uns laços, bolas e celas à moda do país.... Acostumada a esta miséria aparente, que feria nossa delicadeza, a família parecia estar muito satisfeita... (p. 79) - “... Nas casas dos empregados ou dos comerciantes há muito luxo.... Há, por exemplo, dando para a rua, uma luxuosa sala, bem decorada, mobiliada com um piano, um sofá, cadeiras americanas de madeira, bem douradas, de cores brilhantes; essa sala é o lugar de recepção das senhoras. Nessa peça, uma grande porta aberta deixa ver um dormitório, provido de um leito suntuoso e de móveis análogos.... (p.474) -“ Nessas grandes salas, as senhoritas da casa passam todo o dia sem fazer nada, ou bem estudando contradanças espanholas, ou valsas ou o acompanhamento de uma nova melodia que devem cantar ao entardecer...(tertulias).... se baila o minueto, o montonero, a contradança e a valsa.... As senhoritas participam de todas a sconversas, agradando com sua espiritualidade,... sempre alegres e encantando as reuniões... (p.474) -“ Os habitantes da cidade são tão falantes como os da campanha são taciturnos.... Assombra, sobretudo, ver os jovens abordar os problemas mais importantes de moral e de direito, estender-se sobre teorias de economia política, falar de indústria, belas artes, literatura...(p.478) -“ O insensível gaúcho, que quase desconhece o amor, conece raramente a amizade, aceita apenas a existência dos afetos familiares e trata aos animais tão duramente como a seus semelhantes e a si mesmo. Os europeus veêm com indignação, nas cidades, aos peões dos ´matadouros `, divertir-se mutilando aos pobres cães que acodem em busca de despojos. Até as crianças, educados desde cedo na crueldade, se comprazem em cortar-lhes, a golpes de faca, as partes, como veêm seus pais fazerem com as vacas, e seus primeiros jogos anunciam a ferocidade de seus costumes futuros;porque, providos de armas proporcionais a sua idade, as crianças da campanha se ameaçam sem cessar, em suas lutas, com mutilar-se e degolar-se.( p.482-3) -“ Pouco mais tarde, fomos alcançados por dois homens e duas mulheres a cavalo, cuja vestimenta nos permitiu reconhecer como fazendeiros ou estancieiros. As mulheres estavam vestidas como todas as amazonas, quer dizer, levavam um chapéu de homem, adornado como lindas plumas de avestruz, que lhes sentava muito bem.... (p.80)
Conclusão
Os relatos de viajantes têm sido utilizados como importantes fontes para a pesquisa histórica. Além de oferecerem descrições pormenorizadas sobre a realidade econômica, social, política e cultural da América Latina em diferentes momentos de seu processo histórico, as representações construídas pelos seus autores influenciaram, em muito, na construção do imaginário existente sobre a América Latina, tanto no exterior quanto no próprio continente. Os europeus descreveram viagens à América Latina desde o episódio da conquista até os dias de hoje. Dentre eles, os que mais contribuíram para a produção do conhecimento histórico do continente foram os viajantes do século XVI, movidos pelo espírito de aventura e conquista, e os que realizaram suas viagens a partir do final do século XVIII e ao longo de todo o XIX, influenciados pelos valores do cientificismo e do romantismo. Nessa comunicação, inciamos, considerando a literatura de viagem como uma reinvenção da realidade que, diferentemente da literatura ficcional, encontrou seu fio terra no contexto social, econômico, cultural e principalmente científico que esteve presente na Europa desde meados do século XVIII. Como tal, destacamos a valorização do conhecimento científico e o cenário exótico que o romantismo introduziu na época, identificamos os objetivos e as características das expedições que visitaram o território latino-americano, bem como apresentamos uma síntese de relatos de viajantes que descreveram preferencialmente a Região Platina. Com este sentido, entendemos os depoimentos dos viajantes como efeito de um contexto histórico e, sob esta ótica, se constituindo em fonte para a compreensão da sociedade de um certo período histórico.
Num segundo momento, analisamos a contribuição dos relatos desses viajantes à construção da antinomia civilização x barbárie, da forma como foi re-apresentada por Sarmiento na obra Facundo e largamente difundida entre os platinos, ou seja, como sendo expressão da contradição existente entre cidade e campo. Sendo assim e buscando, do ponto de vista teórico, abordar a participação das idéias e das representações na construção da realidade, comparamos as descrições realizadas pelos viajantes e por Sarmiento a fim de entender como a transculturação que se efetivou acabou influindo no imaginário dos intelectuais e políticos platinos da primeira metade do século XIX. Com este sentido, os relatos de viagens podem ser considerados como representações que atuam como causa da prática social e política.
Bibliografia citada:
AZARRA, Félix. Viajes por la América Meridional. Buenos Aires, El Elefante Branco,
1998.
CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa, Difel,
1990.
CONCOLORCORVO. El lazarillo de los ciegos caminantes. Buenos Aires, Emece, 1997.
D´ORBIGNY, Alcides. Viagem à América Meridional – 1826-1833. Buenos Aires,
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ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. 2ª ed., RJ, Jorge
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ISABELLE, Arsénè. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro,
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LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem. BH, UFMG, 1996.
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Acervos permitem conhecer viajantes

Reportagem
Por Patrícia Mariuzzo e Sueli Mello


Depois dos caminhos percorridos pelos viajantes, a preservação e divulgação dos acervos sobre as viagens de estrangeiros pelo Brasil é o caminho – muitas vezes ainda inédito – a percorrer para conhecer o trabalho desses homens que atravessaram o Brasil e outros países da América Latina, em busca do conhecimento das terras e dos povos do novo mundo. Segundo Ana Maria Belluzzo, professora de história da arte da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em artigo publicado na Revista da USP, em 1996, o legado iconográfico e a literatura de viagem dos cronistas europeus trazem a possibilidade de novas aproximações com a história do Brasil. No entanto, isto só é possível a partir do acesso ao material produzido por eles.
O Brasil possui um acervo rico sobre viajantes ainda com infinitas possibilidades de pesquisa. Uma das primeiras iniciativas de divulgação desses acervos ocorre com a publicação no Brasil dos diários viajantes, a partir da década de 1940. Para Valéria Alves Esteves Lima, historiadora da Unicamp, que estuda a obra do pintor Jean-Baptiste Debret, a iniciativa de traduzir e publicar livros de viajantes, entre outras obras consideradas “clássicas” sobre o país, é resultado de um movimento promovido pelo Estado Novo para estimular a cultura e afirmar a brasilidade. Um dos expoentes desse movimento é José de Barros Martins, editor e proprietário da Livraria Martins, que traduziu e publicou a coleção Biblioteca Histórica Brasileira, com livros escritos por viajantes estrangeiros, tais como Debret, Rugendas, Kidder, Saint-Hilaire, Luccock, Ribeyrolles.




Mas muitas vezes é necessário ir além dos livros e consultar registros mais antigos, originais, edições fac-símile, anotações, diários, pinturas, aquarelas, cartas, enfim, materiais diversos que podem dizer mais sobre o projeto dos viajantes em terras estrangeiras. As obras sobre viajantes são classificadas como obra rara, tanto pela idade, como pela importância histórica e seu conteúdo. Para evitar a constante manipulação do original, o trabalho de preservação feito pelas bibliotecas e arquivos inclui a microfilmagem, a duplicação fac-similar e, mais recentemente, a digitalização, que tem a vantagem de facilitar também a divulgação do acervo via internet.
Acervos só adquirem sentido quando são acessados para pesquisas. Para o historiador Danúzio Gil Bernardino da Silva, organizador da coleção Diários de Lansgsdorff, a preservação não tem valor se não houver divulgação do acervo. “Não adianta deixar a informação oculta nas coleções de obras raras”, alerta. Para ele, a dificuldade de acesso por parte dos pesquisadores gera subutilização dos acervos. “O ideal é que a consulta seja aberta para todos, não apenas nas universidades, mas que inclua alunos e professores do ensino médio”, defende.
O mais recente esforço de preservação e divulgação de acervo de viajantes é o projeto Flora Brasiliensis On-line, do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), da Unicamp, financiado pela Fapesp, Natura e Fundação Vitae. O projeto torna acessível e público um acervo que antes só podia ser consultado em bibliotecas especializadas, e confirma a impossibilidade de entender determinadas questões de botânica, ecologia, geografia, biologia e da história do Brasil sem recorrer aos acervos dos diversos viajantes que percorreram o país nos séculos XVIII e XIX. Da mesma forma, a construção de imagens do Brasil e da América passa pelos relatos dos artistas, cronistas e cientistas estrangeiros que atravessaram o continente desde o século XVI.
Acervos digitalizados
A Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, fez uma parceria com o Instituto Embratel 21, com base na Lei Municipal de Incentivo à Cultura, que resultou na digitalização de 25.500 documentos e obras raras, apenas na primeira fase. O projeto, que contemplou também a restauração e o tratamento das obras, priorizou três importantes coleções históricas e raras da cidade de São Paulo, uma delas a coleção “Os viajantes”, composta por mil gravuras e cem livros dos séculos XVI a XIX. Foram digitalizados 45 álbuns de viajantes que estiveram no Brasil. O conjunto de imagens complementa os livros sobre o Brasil, também digitalizados na íntegra. Responsável pela seleção das obras que seriam digitalizadas, Rizio Bruno Sant’Ana, explica que o acervo sobre viajantes foi escolhido “pela importância histórica e porque são obras muito procuradas pelos usuários”. No site da Biblioteca, mil imagens estão disponíveis para consulta.
Na mesma linha, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, que possui cerca de sete mil obras raras em sua biblioteca, também buscou a digitalização para ampliar o acesso ao acervo. “Temos uma infinidade de relatos de viajantes, que muitas vezes são exemplares únicos no Brasil. Para mim, a divulgação desses livros tornou-se uma necessidade”, relata Márcia Moisés Ribeiro, coordenadora do projeto Brasil Ciência, financiado pela Fapesp, o qual constitui-se numa base de dados relacionada à prática e ao saber científico no período do século XVI ao XIX. Através desse instrumento de pesquisa, o usuário tem acesso não só a informações relativas a todos os documentos contidos na base, como também ao conteúdo integral de diversos manuscritos e livros impressos existentes no arquivo e na biblioteca do IEB, os quais também estão disponíveis para impressão. Embora o processo de digitalização do material ainda esteja em andamento, a base de dados já está on-line, com cerca de 400 títulos de obras raras, entre impressos e manuscritos. Segundo a coordenadora, a digitalização começou pelos livros mais procurados e pelas obras inexistentes em outras bibliotecas e arquivos de São Paulo.
Outro acervo indispensável para pesquisadores da obra dos viajantes está na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Apesar de espalhado em áreas especializadas da biblioteca, o volume de material supera possíveis dificuldades com a localização das obras. A bibliografia reúne cerca de 600 títulos, compilada pela Divisão de Informação Documental e publicada na última edição dos Anais da Biblioteca Nacional (2006). A bibliografia não foi exaustiva, mas tentou reunir a maior parte do acervo sobre viajantes da maior biblioteca do Brasil. “As principais fontes para a compilação foram os catálogos da BN e a obra de Paulo Berger, que relacionou bibliografia sobre viajantes e autores estrangeiros no Rio de Janeiro”, explica Eliane Perez, coordenadora de pesquisa da biblioteca. Assim como em São Paulo, muitas dessas obras já estão digitalizadas como parte de projetos mais amplos de digitalização de raridades da Biblioteca Nacional.
Grande variedade de material
Descrever o cotidiano do povo brasileiro pela ótica da cidade, era, por exemplo, o projeto de Jean-Baptiste Debret, pintor francês que chegou ao Brasil com a Missão Artística Francesa de 1816 e que aqui permaneceu por quase 15 anos. Ele reúne parte das suas impressões sobre o Brasil na obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, com três volumes. Para explicar como Debret organizou a publicação, Valéria Lima, percorreu coleções raras em São Paulo e Rio de Janeiro, estados com a maior parte do acervo sobre viajantes no Brasil, e em Paris, França. Ela salienta a importância de comparar o material encontrado em diferentes acervos. “Além da questão da tradução, muitas edições omitem partes dos originais. No caso de Debret há um capítulo chamado Notas Históricas que não aparece em nenhuma tradução”, comenta. Para ela, só uma visão ampla do acervo pode responder a determinadas questões colocadas pelo pesquisador. Um conjunto fundamental da obra do artista, que não foi publicado, está no Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro. São 490 aquarelas e 61 desenhos originais que o empresário Raymundo Ottoni de Castro Maya comprou dos familiares do pintor em 1939 e 1940. O acervo está digitalizado e pode ser consultado apenas no próprio museu. As aquarelas originais não estão disponíveis para consulta.
Enquanto a obra de Debret sobre o Brasil está concentrada em instituições no Brasil, os originais de outro importante artista-viajante do século XIX, Johann Moritz Rugendas, está dispersa em várias coleções no Brasil e na Europa. Segundo Pablo Diener, professor da Universidade de Munique, Alemanha, que fez um trabalho de compilação e catalogação da obra de Rugendas, o acervo do pintor soma aproximadamente seis mil peças entre pinturas a óleo, aquarelas e desenhos. A maior parte dos trabalhos encontra-se em duas coleções alemãs, em Munique e em Augsburgo. O restante está disperso em numerosas coleções públicas e particulares da Alemanha e no continente americano. No Brasil há um conjunto de 437 folhas na Coleção de Arte Gráfica do Museu de Munique. São desenhos da flora e fauna, motivos etnográficos e cenas de tema histórico, como a coroação de Dom Pedro I. Existem ainda 79 ilustrações originais na Academia Russa de Ciências, em São Petesburgo, Rússia, que o pintor entregou para o barão Langsdorff, ao deixar a expedição russa.
Talvez por ser o último dos grandes viajantes, Lansgsdorff demorou mais tempo para ser descoberto pelos pesquisadores. A equipe da expedição tinha, além do próprio médico, um botânico, um astrônomo e cartógrafo, zoólogo e dois pintores. Dessa variedade de profissionais resultaram da viagem volumosas coleções científicas que ficaram durante anos no Museu Botânico de Leningrado, na Rússia. A coleção de documentos sobre a expedição foi trazida para o Brasil em 1990, pelo pesquisador russo Boris Komissarov, através de uma ação conjunta da Fiocruz, Funasa, Fundação Nacional de Saúde e da AIEL, Associação Internacional Estudos Langsdorff, em forma de microfilme. Além da Fiocruz e da AIEL, o acervo também pode ser consultado no Centro de Memória da Unicamp e na Universidade de Brasília. Em 1997, foram publicados os diários de Lansgsdorff. Danúzio Bernardino da Silva, que organizou a coleção, explica que o objetivo da publicação foi dar um sentido para o acervo, monumental em termos de informação.
Dicionários de línguas indígenas, diários de viagem, documentos sobre demografia, economia, mapas, desenhos, comentários sobre a escravidão, são exemplos do tipo de material que compõe o conjunto do acervo. “Como todo diário, é composto por anotações, observações e fragmentos do cotidiano. É exatamente essa visão fragmentada que compõe o mosaico de sua época. Os diários são a chave para conhecer o acervo”, acredita Danúzio. Na fase final da viagem, Langsdorff contraiu malária, o que o impediu de terminar os diários. A tarefa foi assumida por Hércules Florence, pintor francês que entrou na equipe da expedição no lugar de Rugendas.
Além do acervo sobre a Expedição Langsdorff, outras obras fazem da seção de obras raras da biblioteca da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), um importante centro de documentação científica, com fontes de pesquisa dos séculos XVII ao XX. Em publicado na revista História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 2002, Maria Elide Bortoletto, pesquisadora da Fundação, conta que entre os itens do acervo, destacam-se raridades como o livro História naturalis brasiliae (Amsterdam, 1648), de Piso e Marggraf, naturalistas que vieram ao Brasil a convite de Maurício de Nassau durante o período da ocupação holandesa no Nordeste. “O livro, como sabemos, foi considerado o primeiro escrito sobre história natural do Brasil e seus textos e ilustrações serviram de base para outros trabalhos que se seguiram, alguns dos quais produzindo importantes obras de referência, como a coleção de Flora Brasiliensis, de von Martius”, destaca ela. Do século XIX são significativos livros e atlas de viajantes como Alexander von Humboldt, Maximiliam von Wied, Auguste de Saint-Hilaire, Johann Baptist von Spix, von Martius, Louis Agassiz, entre muitos outros. “A Fundação tem ainda material sobre viajantes descobertos por uma produção recente nessa temática, sobretudo de historiadores, como as obras de François Auguste Biard, Hermann Burmeister, Henry Coster e Jean Théodore Descourtilz, todas ricamente ilustradas e com textos importantes sobre fauna, flora e costumes dos povos dos países visitados”, completa.
Bases de dados podem facilitar pesquisas
Diante da diversidade de instituições que detêm acervos sobre viajantes e naturalistas, um caminho para incentivar a consulta e facilitar o acesso a acervos sobre o mesmo tema é a criação de bases de dados, cruzando as informações das bibliotecas e institutos. O Centro de Pesquisas em História Social da Cultura (Cecult), da Unicamp, iniciou a implantação de um projeto deste tipo. “A principal motivação para constituir uma base de dados sobre viajantes foi construir um instrumento de pesquisa, que reunisse o maior número possível de referências sobre esse grande cabedal de fontes e, através de vários cruzamentos de dados possíveis, fornecer um acesso mais rápido, organizado e amplo a pesquisadores que se interessem por esse tema”, explica Eneida Maria Mercadante Sela, pesquisadora do Cecult. Segundo ela, não se tem notícia de uma base de dados especializada em obras de viagem no Brasil.
O projeto teve como referência inicial um vasto catálogo de obras de viajantes e, secundariamente, de cronistas e memorialistas, brasileiros e estrangeiros, que produziram textos sobre a África, Portugal e Brasil entre os séculos XVI e XIX. Em função dos interesses das várias pesquisas que integram o Cecult, foram selecionadas somente obras de viajantes que contenham registros sobre as províncias de São Paulo, Minas Gerais e/ou Rio de Janeiro durante os séculos XVIII e XIX. Foi elaborada, então, uma ficha para coleta de dados dessas obras nas bibliotecas da Unicamp, do IEB-USP, Biblioteca Mário de Andrade (em São Paulo) e Biblioteca Nacional. Os campos dessa ficha, após várias reuniões e testes, foram definidos de modo a obter informações básicas sobre cada autor e livro, privilegiando elementos editoriais e de conteúdo. Segundo Sela, o trabalho de inclusão de dados foi concluído, totalizando aproximadamente 400 autores, cada um com várias edições de suas obras. O material encontra-se em fase de revisão, mas já disponível para consultas no Cecult. A idéia, entretanto, é disponibilizar o acesso on-line ao banco de dados.
Fonte: COM CIÊNCIA - Revista Eletrônica de Jornalismo Científico.

Imagens de Santa Catarina: arte e ciência na obra do artista viajante Louis Choris1

Luciana Rossato
UFRGS/Capes
RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar as obras que têm como tema a paisagem da ilha de Santa Catarina produzidas pelo artista viajante Louis Choris a partir de sua passagem pela região no ano de 1815. As imagens inserem-se numa longa tradição de produções pictóricas que combinavam arte e conhecimento. As expedições científicas contavam com artistas que tinham a função de reproduzir os espécimes coletados e também as paisagens das regiões visitadas.
Palavras-chave: Choris, L.; Imagem; Ciência.

Este artigo tem como objetivo analisar as obras que o artista viajante Louis Choris produziu tendo como tema a paisagem brasileira, mais especificamente a ilha de Santa Catarina, localizada ao sul da colônia portuguesa. Entre as inúmeras litografias e desenhos que produziu, encontram-se quatro imagens coloridas, acompanhadas de texto explicativo, publicadas no formato in-fol em 1826 na obra intitulada Vues et paysages des regions équinoxiales recueillis dans un voyage autour du monde, impressa pela editora Paul Renouard, de Paris. A maioria dos cientistas viajantes utilizava o desenho com o objetivo de acrescentar informações ao que estava sendo relatado nos diários de viagem e os espécimes que estavam sendo coletados. Nos trabalhos dos artistas viajantes acontecia o contrário: era a escrita que acrescentava informações ao que era retratado pelo viajante.
Louis Choris era desenhista, pintor e litógrafo russo. Nasceu em 22 de março de 1795, em uma família alemã que morava em Iekaterinoslav. Foi enviado para estudar no ginásio de Kharkov, onde seu talento para o desenho aflorou. Seus primeiros ensaios chamaram a atenção do naturalista Marschall de Biberstein que, em 1813, o levou para sua primeira viagem de estudos ao Cáucaso, quando tinha apenas 18 anos. Foi convidado a fazer parte da expedição "Rurick", organizada pelo conde de Romanzov (1754-1826), chanceler do Império Russo, entre os anos de 1815 e 1818. A expedição tinha como meta principal descobrir uma passagem entre o Pacífico e o Atlântico pelo caminho do estreito de Behring. Comandada por Otto von Kotzebue, tal expedição teve grande importância do ponto de vista geográfico, pois permitiu um melhor conhecimento do Pacífico. O "Rurick" visitou sucessivamente Tenerife, a ilha de Santa Catarina, no Brasil, Talcahuanha, na costa do Chile, a ilha de Páscoa, bem como outras ilhas no Pacífico até o estreito de Behring. O trajeto feito pelo navio explorou também a costa da Ásia e a costa oeste da América do Norte. O tempo de permanência na ilha de Santa Catarina foi pequeno, entre o dia 29 de novembro de 1815 e o dia 16 de dezembro do mesmo ano (ou 11 a 28 de dezembro, pelo calendário gregoriano).2
Em 1819, um ano após o término da expedição, Choris partiu para Paris, onde conviveu com outros artistas e cientistas. Estudou e trabalhou com Jean Baptiste Regnault e no ateliê de M. Gérard, com os quais aprendeu a técnica da litografia. Em 1827 deixou a França para visitar o México e outras regiões da América. Morreu de forma trágica na cidade de Vera Cruz, México, em 22 de março de 1828, ferido por um golpe de sabre e atingido por uma bala, ao tentar se livrar de assaltantes. Seus trabalhos começaram a ser publicados em Paris a partir do ano de 1819. Além da obra já citada, trabalhos seus podem ser encontrados em Voyage pittoresque autour du monde, accompagné de descriptions de mammifères par M. le baron Cuvier et d'observations sur les crânes humains par M. le docteur Gall, publicado em Paris no ano de 1820, em formato in-fol., com figuras e mapas. Em 1822 surgiu outra edição com o título levemente modificado: Voyage pittoresque autour du monde, avec des portraits de sauvages d'Amérique, d'Ásie, d'Áfrique, et des iles du Grand Ocean; des paysages, des vues maritimes et plusiers objets d'histoire naturelle. Esse trabalho é acompanhado por descrições e observações do Barão Cuvier, de Adalbert von Chamisso e do doutor Gall. Foi impresso pela editora Firmin Didot, de Paris. Essas edições possuíam vários fascículos e eram relativamente caras, por isso muitas somente eram publicadas com a venda antecipada de um número mínimo de exemplares, de maneira que a venda pagasse a impressão das gravuras. As pessoas que adquiriam os álbuns, muitas vezes os desmembravam a fim de emoldurá-las.
No Brasil não se encontram traduções completas dessas obras. É possível encontrar partes específicas que foram traduzidas e publicadas em coletâneas, como as quatro pranchas, acompanhadas dos respectivos textos explicativos, publicadas em Ilha de Santa Catarina: relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP há uma cópia do Vues et paysages des régions équinoxiales recueillis dans un voyage autour du monde. A Biblioteca Mário de Andrade (SP) possui uma cópia do Voyage pittoresque autour du monde, publicado em Paris no ano de 1822 pela editora Firmin Didot. Além desse material impresso, Afonso d'Escragnolle Taunay cita a existência de uma aquarela que reproduz o cenário da prancha V, com pequenas diferenças no ambiente natural retratado e sem a presença dos bailarinos africanos. Essa obra foi adquirida por Almeida Prado na Europa.3
No final do século XVIII e na primeira metade do século XIX a América foi tema de inúmeras imagens, reproduzidas em desenhos, pinturas, xilogravuras, litogravuras etc. Dessa forma, as paisagens e as populações do Novo Mundo tornaram-se acessíveis a um maior número de pessoas na Europa. A litografia, técnica utilizada para reproduzir as imagens de Choris, difundiu-se no início do século XIX. O procedimento, que utiliza a pedra para a confecção da matriz, é mais preciso do que a xilogravura. Além de permitir a reprodução em massa, possibilitava a confecção de novas criações.
A utilização de artistas para a produção de imagens sobre regiões pouco conhecidas pelo Velho Mundo remonta ao período das grandes descobertas. Um exemplo são as imagens produzidas por Franz Post que, juntamente com Albert Eckhout, acompanhou o governador holandês Maurício de Nassau durante o período do domínio holandês no Nordeste brasileiro (1630-1654). Inicialmente, a presença desses artistas tinha como objetivo mapear o relevo, os portos e a geografia das novas regiões. Foi somente no final do século XVIII que as missões científicas se multiplicaram, e os artistas que participavam dessas missões passaram a ter outras funções. Continuavam retratando a topografia, mas também dedicavam-se às cidades, aos tipos humanos e aos seus costumes etnográficos.4 Marcos Vinicius de Freitas afirma que no período colonial e imperial brasileiro existiram três diferentes influxos no que se refere à pintura e ao desenho de paisagens. O primeiro ocorreu com a vinda de artistas e cientistas da missão de Maurício de Nassau. Franz Post, Albert Eckhout e Georg Marcgraf foram os artistas que, no século XVII, produziram imagens sobre o Brasil holandês. Post foi quem estabeleceu a palmeira como um dos símbolos do paisagismo tropical. O segundo influxo localizou-se na primeira metade do século XIX e foi marcado por três eventos: a vinda da Missão Artística Francesa em 1816, a vinda da Missão Científica Austríaca em 1817 e a Expedição Langsdorff, realizada entre os anos de 1822 e 1825. O terceiro e último influxo foi marcado pela presença do professor Johann Georg Grimm na Academia de Belas Artes, entre os anos de 1882 e 1884. Ele levou seus alunos para fora dos ateliês, para terem contato com a natureza, o que influiria nos padrões acadêmicos da pintura das paisagens.5
O trabalho de Louis Choris vinculou-se aos dois primeiros momentos, ou deles recebeu influências. Apesar de não podermos afirmar com certeza se ele teve ou não contato com certos artistas, ou com seus trabalhos, levantaremos algumas considerações. Os trabalhos dos artistas que acompanharam Nassau foram doados a Frederico Guilherme de Brandenburgo. No ano de 1664 foram publicados em Berlim sob o título de Theatrum rerum naturalium brasiliae. A obra compreende 1.460 trabalhos editados em 4 volumes. Em 1814, um estudioso chamado Lichtenstein dedicou vários estudos a essa obra, após localizá-la na Biblioteca de Berlim. Além disso, Maurício de Nassau presenteou o rei da França, Luís XIV, com quatro quadros de Franz Post. Esses trabalhos realizados pelos artistas holandeses ou estavam em Paris, ou estavam sendo objeto de estudo na mesma época em que Choris fazia sua formação de artista viajante, o que aumenta as possibilidades de o jovem tê-los analisado. Além disso, Choris provavelmente teve contato com diversos artistas e cientistas de sua época, uma vez que mantinha relações com Alexander von Humboldt, o qual congregava ao seu redor cientistas, viajantes e artistas, entre eles Rugendas. Artistas e cientistas ou moravam na capital da França, ou então mantinham contato com suas instituições, como por exemplo o Muséum National d'Histoire Naturelle. Um ano após o término da viagem no "Rurick" (1815-1818), Choris mudou-se para Paris, e permaneceu na cidade até o ano de 1827, quando deixou a França rumo ao México, onde veio a falecer.
As imagens que têm como motivo a América podem ser divididas em dois tipos. Uma das formas mais freqüentes era a pintura de vistas sobre as cidades da América Colonial, onde podemos perceber a preocupação dos artistas em registrar o entorno das vilas e seu aspecto geral, inserindo ou não os indivíduos que viviam no local. A outra forma consistia na produção de imagens da natureza, fosse ela no seu conjunto, como o pregado por Alexander von Humboldt, fosse ela compartimentada, com animais ou plantas sendo pintadas individualmente, em detalhes. No primeiro tipo de imagem, o interesse estava voltado para o que o homem produziu, principalmente as cidades. No outro, o olhar se voltava para a natureza, em decorrência principalmente do desenvolvimento das ciências naturais.
As cidades da América eram pintadas inicialmente vistas de cima e paulatinamente passaram a ser retratadas de frente e em detalhes, num movimento contrário às vistas das cidades européias, sempre retratadas de frente e posteriormente vistas de cima. As cidades retratadas de cima,6 de forma perspectivada, nos mapas em escala reduzida, substituíram as representações de perfil e/ou idealizadas do início da ocupação da América pelos europeus. Posteriormente, os viajantes passaram a retratar as cidades de frente, a partir do mar, nos conhecidos perfis urbanos. Retrataram os morros e as construções, normalmente capelas, igrejas e construções militares.7 O interesse europeu em retratar as cidades surgiu no século XV, relacionado com a expansão comercial, a secularização da arte e o progresso da imprensa. As primeiras vistas das cidades surgiram nos Atlas, onde arte e geografia estavam unidas. No século XVI a produção de vistas e mapas foi ampliada. As cidades eram representadas do ponto de vista de um pássaro (vôo-de-pássaro ou vol d'oiseau), numa tomada globalizante do espaço. Além disso, os mapas eram decorados com produtos da cidade retratada, chamando a atenção para suas riquezas.
Nas pinturas do Nordeste brasileiro, produzidas por artistas holandeses durante o governo de Nassau, são identificados produtos tropicais, como frutas e animais. Esse tipo de produto, vistas de regiões distantes como a Ásia e a África, tornou-se sucesso na Europa entre os anos de 1785 e 1860. As vistas que tinham a América como tema começaram a ser publicadas no início do século XIX. Valéria Salgueiro salienta que
sendo o álbum de vistas urbanas produzidas pelos viajantes europeus expressão ao mesmo tempo da cultura latino-americana (quanto ao objeto retratado: a cidade) e da cultura européia (quanto à natureza do produto: o álbum ilustrado de vistas), sua história não pode estar divorciada da história mais ampla das vistas urbanas da própria Europa, já que estas compõem sua matriz de origem.8
Em razão dos interesses marítimos e comerciais, que se somaram à propagação de um conhecimento científico baseado na História Natural, difundiu-se a preocupação de registrar de forma a mais fidedigna possível as regiões não-européias. Além desses interesses, devemos salientar o aumento na procura e difusão de vistas e pinturas por uma crescente classe média letrada, que utilizava as reproduções na decoração de suas residências. Somou-se a isso a difusão do mercado editorial, conseqüência do maior poder aquisitivo e do aprimoramento técnico, que possibilitava produzir em larga escala gravuras baseadas nas pinturas e aquarelas feitas pelos artistas viajantes, vendidas como álbuns ilustrados.
Madeleine Pinault classifica as obras dedicadas à História Natural em duas categorias: a tendência pitoresca e as coleções iconográficas sobre pergaminho. A tendência pitoresca refere-se à pintura com sujeitos diversos, destinada aos gabinetes ou à decoração de construções reais. Essas obras reproduziam imagens de plantas, animais e paisagens, que eram do interesse dos colecionadores, normalmente feitas por artistas renomados que recriavam a ilusão de natureza. Já as coleções iconográficas sobre pergaminho permitiam que as espécies animais e vegetais fossem classificadas e preservadas por meio da imagem. Além disso, a difusão desse conhecimento científico seria ampliada, principalmente entre os amadores. Outro aspecto que a autora salienta é a utilização econômica desse tipo de produção iconográfica. Muitos dos desenhos eram utilizados para o estudo da História Natural e da anatomia, mas outros eram destinados às manufaturas de tecidos e porcelanas, sendo reproduzidos pelos artesãos. A natureza oferecia inúmeras possibilidades, pois seus temas poderiam ser utilizados nas artes e também nos ofícios.9
Os artistas viajantes que trabalhavam em expedições científicas tinham a função de produzir um material a ser utilizado como material de pesquisa e estudo, principalmente quando o tema era científico-natural — por exemplo, desenhos da flora e da fauna. Com a expansão do conhecimento científico nos séculos XVII e XVIII houve um estreitamento da relação entre o artista e o cientista na busca de uma representação mais exata e confiável do objeto, fosse ele uma cidade ou aspectos da natureza. Nesse período, graças à expansão da ciência, a arte gráfica passou a ser utilizada como ilustração do conhecimento. Criou-se uma tensão entre o gosto estético e a demanda por um trabalho que tivesse a preocupação com a exatidão das formas e das cores, já que essas imagens seriam utilizadas para a difusão do conhecimento científico. Além disso, difundia-se na Europa uma estética que valorizava o passado, as paisagens naturais, cultivando-se o gosto pelo pitoresco e pelo sublime numa visão estetizada da natureza, no momento em que na Europa a paisagem estava sendo profundamente transformada por causa da Revolução Industrial.10
É nesse contexto que se difundiu o gosto pelos álbuns e pelos livros de viagens ilustrados, principalmente de paisagens. A natureza passou a ser valorizada por si mesma, ela era a artista. Mas essas paisagens exóticas eram retratadas a partir de lugares-comuns,11 o que fazia que a natureza de lugares distantes fosse ajustada ao gosto europeu, tornando-se assimilável ao público a quem eram destinadas. Entre as pinturas, cujo motivo era a natureza, podemos perceber dois tipos de representação, influenciados respectivamente por Conrad Gessner e por Alexander von Humboldt.
Conrad Gessner (1516-1565), naturalista e desenhista de talento, produziu no final da vida um estudo sobre dois tipos de Íris, a Íris Gramínea e a Íris da Sibéria (Figura 1). A última foi desenhada em detalhes, com anotações explicativas. Sua obra marcou uma ruptura entre uma ilustração botânica puramente artística — em que flores, frutos e animais faziam parte do cenário ou então compunham uma natureza-morta — e encaminhou-se para um estudo das plantas, descrevendo-as cientificamente, pressagiando desta forma as futuras pesquisas dos cientistas.

Essa forma de retratar a natureza foi ao encontro da teoria científica de Carl von Linné, difundida na primeira metade do século XVIII. No modelo de representação artística influenciada por Linné, o conhecimento era compartimentado e ordenado. O fundamento da ciência clássica era o desenho matemático e o sentido da visão. O melhor exemplo desse gênero de arte eram as reproduções de espécies vegetais (Figura 2). Essas eram recortadas e pintadas em seus detalhes, a partir de vários ângulos, ou seja, individualizadas e posteriormente comparadas e classificadas pelas regras estabelecidas pela História Natural.

Por sua vez, a concepção artística difundida por Humboldt enfatizava uma visão pictórica que tinha a intenção de abraçar o todo, considerando as diversas formas de vida como interdependentes. Ele solicitava aos artistas que, em seu trabalho de representar a natureza, não utilizassem as espécies trazidas das viagens nem as que se encontravam nas estufas, o que fatalmente remeteria a uma reprodução das plantas deslocadas de seu ambiente de origem. Para ele, as plantas deveriam ser representadas em seu ambiente natural, no que denominava de "o grande teatro da natureza tropical". Os interesses de Humboldt estavam voltados para o estudo das relações entre os seres humanos e a natureza e como elas contribuem para a formação da paisagem. Em sua obra Cosmos, a paisagem é entendida como a "representação mental de um espaço real cujo conteúdo é, por excelência, diversificado".12 A geografia, enquanto área do conhecimento, aprofundou algumas discussões em torno do tema. Esse interesse deveu-se ao fato de que o conceito de paisagem, de natureza e de cultura eram temas caros à sociedade e polêmicos para os estudiosos da área. As dificuldades em analisar as representações sobre as relações dos homens entre si e destes com a natureza foi um dos aspectos que contribuiu para a polêmica entre os estudiosos da geografia. Para Carl O. Sauer, a paisagem, apesar de sua individualidade, estabelecia relações com outras paisagens. Além disso, seu processo de modelagem não era somente físico. Uma área era composta por uma associação distinta de formas que eram físicas e culturais.13 Além da questão cultural, Edvânia Gomes acrescenta outro aspecto, que se refere aos valores atribuídos histórica e culturalmente aos elementos da natureza. São esses valores que determinam suas posições hierárquicas. A paisagem constitui-se como uma representação e reapresentação do mundo, uma vez que "resulta da apreensão do olhar do indivíduo, que, por sua vez, é condicionado por filtros fisiológicos, psicológicos e econômicos, e da esfera da rememoração e da lembrança recorrente".14 Essas discussões podem ser remetidas para a análise da representação plástica da natureza, de suas formas idealizadas. Além da evocação do conteúdo, busca-se também capturar seu caráter "natural". Nessas imagens a natureza pode ser apresentada como uma instância selvagem mas também como bucólica, nostálgica, remetendo à idéia de harmonia.
Nas litogravuras referentes à ilha de Santa Catarina, elaboradas por Louis Choris, a partir de sua passagem por estas paragens no ano de 1815, podemos perceber a influência de Humboldt. O álbum no qual elas foram publicadas, Vues et paysages des régions équinoxiales..., foi dedicado a ele. As litografias foram produzidas durante sua estada em Paris, após a viagem, e publicadas no ano de 1826. Como artista contratado, muitos dos trabalhos produzidos durante a viagem provavelmente foram desenhos voltados para os estudos científicos e pertenciam aos órgãos que organizaram e financiaram a viagem. Infelizmente não tivemos acesso a esses trabalhos. As imagens que fazem parte do álbum devem ter sido feitas após seu retorno à Europa, com base em esboços. Na obra que estamos utilizando para este estudo estão reproduzidas quatro pranchas referentes ao Brasil, mais especificamente à ilha de Santa Catarina, uma vez que a expedição da qual Choris participava não parou em outras regiões do Reino Português. O porto do Rio de Janeiro foi evitado por causa do medo de doenças, comuns em razão da insalubridade da cidade.
A primeira coisa que chama a atenção nas pranchas é o espaço ocupado pela natureza. Ela é representada grande e exuberante, enquanto os seres humanos e sua produção cultural, como por exemplo as casas, aparecem de forma marginal, em segundo plano, apesar de algumas vezes centralizados. Isso ocorre nas pranchas II e IV.15 Na prancha III (Figura 3) a moradia ocupa um plano intermediário, localizado no lado direto, "sombreada por laranjeiras e bananeiras". Já o indivíduo que é reproduzido enquanto trabalha, carregando cachos de bananas, está localizado no primeiro plano, mas sua imagem quase passa despercebida diante da grandeza dos espécimes vegetais aí retratados, neste caso duas espécies de cactos, o "opúncia" e o "colossal", e pés de "ananases". Nos textos explicativos que acompanham as pranchas, Choris afirmou que, em suas andanças pelo interior da ilha, "fica-se tomado de admiração vendo-se a variedade, a força e as dimensões gigantescas dos vegetais que, num espaço bastante restrito, recobrem o solo".16 A riqueza e a variedade de espécies vegetais encontradas na flora tropical encantava e surpreendia os viajantes, fossem eles cientistas ou não

As mudanças científicas que ocorreram na segunda metade do século XVIII iriam influenciar também a sensibilidade dos artistas em relação à natureza. A partir desse momento os cientistas saíram dos gabinetes onde estavam encerrados, estudando as espécies deslocadas de seu contexto natural, e passaram a percorrer o mundo, acompanhados de desenhistas e artistas a fim de estudar a natureza ao ar livre. Ao mesmo tempo em que estavam interessados em descobrir, estudar e analisar a natureza, dedicavam-se também às questões históricas, geográficas e etnológicas das regiões visitadas. Além das transformações científicas, escritores e poetas como Jean-Jacques Rousseau e Salomon Gessner17 também tiveram um papel importante na formação do gosto dos artistas e dos amadores por paisagens e fenômenos naturais.18
Na prancha II (Figura 4), a primeira que retrata as regiões tropicais, nomeada como "Brèsil", as cores e a exuberância da natureza estão colocadas em primeiro plano. Helicônias, philodendrum (popularmente conhecida como costela-de-adão), cactos, bromélias e outras plantas são pintadas ao lado de alguns animais, como o tucano. Apesar de não ser possível identificar as espécies botânicas, somente as famílias, e na reprodução do tucano constatarmos imprecisões na pintura da plumagem, Choris compôs uma imagem dessa região da América que vai ao encontro das representações que se tinha dos trópicos: plantas e animais coloridos, natureza exuberante e exótica e a presença reduzida do ser humano.

No século XVIII, e principalmente na primeira década do século XIX, desenvolveram-se na História Natural estudos do que mais tarde seria chamado de biogeografia, paralelamente à classificação. Humboldt, que viajou pela América Espanhola, desenvolveu estudos sobre a geografia das plantas que influenciaram seus contemporâneos. De suas conclusões, dois aspectos nos interessam particularmente. Um é o entendimento de que os seres vivos só podiam ser compreendidos quando relacionados com os lugares onde se desenvolveram e com os outros seres vivos com os quais estavam relacionados. O outro aspecto refere-se às impressões estéticas experimentadas pelo viajante em cada região por onde passava. Para ele, essas impressões eram parte integrante do trabalho científico, e não podiam ser substituídas por estudos de amostras ou descrições feitas em gabinetes. Essas concepções de Humboldt é que iriam contribuir para justificar a utilização de artistas viajantes nas expedições.
A arte vinculava-se estreitamente ao trabalho científico. Exemplos dessa vinculação podem ser encontrados em várias expedições, mesmo entre as que transitaram pelo Brasil e contaram com artistas tais como Johann Moritz Rugendas, Hercule Florence e Thomas Ender.19 Podemos perceber que, em seus trabalhos, Choris seguiu as recomendações feitas por Humboldt. Os esboços, e mesmo alguma pintura mais elaborada, eram feitos tendo a natureza como modelo. O trabalho de reprodução em litografia foi elaborado posteriormente, quando já se encontrava na Europa, mas tendo como base os inúmeros trabalhos realizados durante a viagem. Além de pintor e viajante, Choris também era litógrafo, o que contribuiu para a qualidade de suas gravuras, uma vez que ele conhecia as possibilidades de reprodução de seus esboços.
Além do contato direto com a natureza que seria o objeto de estudo, Humboldt também estabeleceu o que se denominou o estudo das "fisionomias das paisagens". Segundo ele, existiam vegetais sociais e vegetais associais. As plantas que compunham a natureza tropical eram do grupo associal, ou seja, conviviam espécies de tipos diferentes entre si. E era esse um dos aspectos que impressionava os viajantes europeus, acostumados com os bosques de seu continente, que reuniam várias plantas das mesmas espécies, como pinheiros e carvalhos. O grande número de espécies diferentes convivendo juntas, entrelaçando seus galhos e constituindo um colorido composto por vários tons de verde, era um espetáculo que os impressionava. A natureza tropical, com seu colorido exuberante nas flores e nos pássaros, também foi reproduzida por Choris. A fisionomia da paisagem dos trópicos era composta por algumas espécies básicas, encontradas em suas obras. Temos a presença de coqueiros, cactos, bananeiras, bromélias e helicônias entre as plantas, e de pássaros coloridos como os tucanos e as araras azuis. Os pássaros típicos dos trópicos são vistos nas gravuras II, III e IV (Figura 5). No caso do pássaro azul e amarelo, sua reprodução não corresponde a nenhum tipo de pássaro conhecido. A certeza de que o animal por ele desenhado é uma arara surge apenas ao lermos o texto que acompanha todas as imagens. Segundo João de Deus Medeiros, professor de botânica da Universidade Federal de Santa Catarina, as quatro pranchas reproduzidas nesse álbum não são úteis para os estudos de taxonomia. Tal fato não ocorre com os desenhos de plantas feitos pelo viajante Martius, que ainda são utilizados nos estudos de botânica. Isso se explica porque esses desenhos seguiam os preceitos indicados por Linné, como os feitos por Hercules Florence (ver Figura 4). Entretanto, as imagens de Choris são úteis para identificar a paisagem e as transformações causadas pela ocupação humana. Nas obras de Spix e Martius também são encontradas imagens de paisagens, como a intitulada "Lagoa de aves à margem do rio São Francisco". Como nas pranchas de Choris, essas paisagens eram acompanhadas por textos explicativos que citavam as plantas e os animais retratados.
Na prancha V (Figura 6) a natureza está presente em toda sua grandiosidade, através de altas árvores, como o coqueiro e o mamoeiro, e de outras espécies como as bananeiras, os cactos e os ananases. Ao fundo aparecem os morros e, à direita, a praia e o mar. O que diferencia essa prancha das outras é a presença de cenas de costumbrismo, que são descrições da vida popular. Em todas as pranchas são reproduzidos indivíduos ou então moradias, mas nessa o tema central desloca-se da natureza para o ser humano. Um grupo posicionado em roda, à sombra de uma jabuticabeira, no qual um indivíduo dança e toca um pandeiro, enquanto outro toca um tamborim, mulheres dançam e outros dois encontram-se fora da roda, observando. Segundo Choris, "pelo fim do dia os negros, para se distraírem de seus trabalhos penosos, reúnem-se e dançam: por toda parte onde esta raça de gente habita, ela se entrega com paixão a esse divertimento".20
No momento podemos levantar dois aspectos. Primeiramente o fato de que, como outros viajantes, Choris utilizava o termo "negros", sem fazer distinção se estes eram livres ou escravos. O outro aspecto foi sua generalização, dizendo que a dança era um divertimento ao qual se entregavam os indivíduos de toda uma "raça". Seria essa uma conclusão inconseqüente, já que Choris não conhecia tantas regiões onde a presença negra era freqüente, ou ela se baseava em leituras prévias de outros viajantes? Georg von Langsdorff, no relato que trata de sua passagem pela ilha de Santa Catarina, no final de 1803 e início de 1804, dedicou um grande espaço à descrição das danças dos negros e de sua música, que ele considerava um barulho ensurdecedor. Um dos itens na preparação de um viajante era a leitura de outros relatos, que haviam sido publicados na Europa. Além disso, muitos dos viajantes trocavam correspondências entre si, ou mesmo eram amigos ou colegas nas Academias de Ciência e Museus de História Natural. Essas questões nos remetem à representação sobre a América, sua natureza e seus habitantes que circulavam pela Europa, e que iriam direcionar o olhar do viajante, fosse este um marinheiro, um cientista ou um artista.
Voltando à análise da prancha V, num segundo plano, quase encoberto pelas plantas, encontra-se um casal de descendentes de europeus, provavelmente proprietário de terras, trajado com apuro. O texto explicativo não se refere a eles, como também não comenta sobre o barco representado à direita da imagem. Fala rapidamente sobre as habitações humanas, descrevendo-as como "sítios que a imaginação mais brilhante não poderia crê-las mais agradáveis do que elas são na verdade".21 Em resumo, compõe um quadro pitoresco, formado por casas envoltas por uma vegetação exuberante, com muitas árvores frutíferas, como bananeiras e mamoeiros e, mais afastadas, plantações de milho. Apesar de escrever nesse texto que a dança era uma distração após o trabalho penoso do dia, o que Choris salienta na pintura são grupos de indivíduos desocupados, reforçando assim o estereótipo sobre os habitantes locais.
Um outro tipo de pintura produzida pelos artistas viajantes eram as vistas de cidades, como, por exemplo, a "Vista da vila de Desterro a partir do Hospital"22 (Figura 7), pintada por Jean Baptiste Debret. Esse artista não acompanhava uma expedição científica, tal qual Louis Choris, e suas obras tinham outras finalidades, o que influenciou em sua produção final. Nosso interesse nessa obra justifica-se pela possibilidade de trabalharmos comparando dois tipos de imagens que tomaram como referência a mesma região. Ambos eram indivíduos europeus, tinham a mesma profissão e produziram essas imagens em períodos relativamente próximos,23 mas, no entanto, o resultado que emergiu de seus pincéis é distinto, apesar de possuírem alguns pontos em comum. Enquanto para Debret o central é a vila e o homem que nela habita, para Choris é a natureza. Segundo ele, o homem e o resultado de sua cultura tornam-se periféricos diante da grandeza de uma "natureza ainda selvagem".24

As vistas eram feitas a partir de um ponto alto e com um ângulo aberto, buscando dessa forma representar uma visão geral da cidade e de seu entorno. Nessa obra, pintada na primeira metade do século XIX, podemos perceber que não existia uma preocupação em detalhar as construções. Salientavam-se os prédios maiores, como por exemplo a Igreja Matriz, mas o ponto de observação distante impedia que outras construções menores fossem percebidas em sua individualidade. O olhar era de longe, sem perceber as particularidades da cidade, de suas construções e de seus habitantes. Uma metáfora da visão dos viajantes em relação à América. O retratado era o que, de certa forma, já fazia parte da imagem européia da região. Uma paisagem idílica, onde a maior parte era tomada pela natureza, tão grandiosa que o trabalho do ser humano, no caso a cidade, ocupava um espaço reduzido.
O ponto de observação do pintor é o pátio do hospital, atual Hospital de Caridade, localizado no morro denominado Boa Vista. No primeiro plano podemos perceber alguns temas comuns, que são retratados em vistas de outras cidades brasileiras: dois negros carregando um doente, um indivíduo caminhando com a ajuda de muletas e na companhia de uma criança, e outros indivíduos, que pelas roupas parecem ser religiosos. Debret fazia parte de uma expedição artística financiada pelo governo português, e esteve no Brasil com o objetivo de ministrar aulas na Escola de Belas Artes (que não teve um prédio próprio durante sua permanência no país). Pintou muitas obras a pedido do governo — inicialmente o português, e mais tarde o do Império do Brasil, após a Independência — e também muitas cenas urbanas, nas quais retratou o trabalho e o cotidiano de vida dos escravos. Após sua mudança para o Brasil, mudou o estilo e os temas de suas pinturas, influenciado pela experiência e pelo contato com a sociedade colonial. Apesar de ter se dedicado a diversos temas, também foi influenciado pelos interesses do mercado consumidor, neste caso, o europeu. No início do século XIX, vistas de cidades estavam na moda, e Debret reproduziu várias delas, de diferentes cidades, como Laguna, São Paulo, Santos e São Vicente, entre outras. Na vista de Desterro, podemos constatar o gosto pelo diferente, pelo pitoresco. Grande parte da pintura é tomada pelo tema da natureza: a vegetação, onde podemos constatar a presença de coqueiros, os suaves contornos dos morros ao fundo e o mar. O interesse pelo "exótico", pelo "tropical", pelo "pitoresco" continua presente, mesmo com o desenvolvimento de um olhar classificador e científico sobre a América e as regiões tropicais.
Mesmo os artistas que, como Debret, não pintavam com o objetivo de produzir um material complementar ao trabalho científico, eram influenciados pelos métodos utilizados pelos cientistas para a observação de um país e uma cultura estranha. Na obra que estamos analisando, Debret preocupou-se em retratar a mata e nela incluir as palmeiras, um dos tipos básicos da natureza do Brasil. No entanto, essa natureza é a moldura para a vila, para o que o homem havia produzido. Em outras obras suas, que retratam os escravos no Rio de Janeiro, também incluiu aspectos da natureza local, como na prancha em que retrata os ajudantes dos naturalistas, ou então os negros de ganho vendendo frutas típicas na cidade do Rio de Janeiro. Mas, apesar de sofrer influências e retratar aspectos que interessavam aos estudiosos, seu objetivo era distinto. Segundo Ana Belluzzo
a atenção de Debret não se dirige para construção da idéia de natureza, nem para o reconhecimento das riquezas naturais, nem de uma humanidade em estado natural. Debret trata de centrar a atenção no estado geral da sociedade, buscando apreendê-la com base no entendimento da transformação da natureza em cultura, do natural em civilizado. A concepção procede da Ilustração francesa, acrescida do interesse pelas particularidades dos povos.25
Jean Baptiste Debret nasceu em Paris no dia 18 de abril de 1768, filho de um escrivão do Parlamento de Paris. Seu pai tinha parentesco com o arquiteto Demaison e com os pintores François Boucher e Louis David. Após os estudos básicos, aprofundou-se no conhecimento do desenho e da pintura na escola do célebre pintor Louis David, tendo até mesmo acompanhando o mestre em uma viagem de estudos à Itália. Retornou no ano de 1785 a Paris e apresentou trabalhos na Escola da Academia de Paris. Com a vitória no Salão de 1798, tornou-se conhecido, aumentando os convites para executar trabalhos, como pinturas e decorações em casas particulares, cujos temas versavam sobre a História Antiga e fatos militares. Recebeu várias encomendas do governo francês e, em 1815, após a morte de seu único filho de 19 anos, resolveu aceitar o convite de Lebreton, o qual estava organizando a Expedição Artística Francesa a pedido do Marquês de Marialva. Aos 47 anos embarcou em uma viagem para o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro em 25 de março de 1816, onde viveu e montou seu ateliê, numa casa no bairro do Catumbi. Permaneceu no país por 15 anos, com a atribuição de desenhar e pintar cenas oficiais e produzir retratos da nobreza, sendo um dos responsáveis pela construção da imagem e da simbologia do Governo Imperial Brasileiro. No Brasil abandonou os cânones do neoclassicismo, procurando adequá-lo ao novo cenário. A partir de 1821, passou a registrar aspectos das cidades, principalmente do Rio de Janeiro, desenhos da paisagem e de costumes locais, como as festas religiosas, a relação entre senhores e escravos e os usos e costumes do país. Teve vários discípulos, apesar dos contratempos sofridos pela Escola de Belas Artes. Entre os anos de 1826 e 1830 realizou diversas exposições. Retornou a Paris em 25 de julho de 1831, onde veio a falecer no ano de 1849, aos 80 anos de idade.26
Para trabalharmos com essas pinturas existe a necessidade de definirmos o que é iconografia, um termo muito utilizado pelos estudiosos para definir as imagens produzidas pelos artistas, fossem estes viajantes ou não. Erwin Panofsky define iconografia a partir do termo 'grafia', que vem do grego grafhein e significa escrever. Para ele, iconografia "é a descrição e classificação das imagens", sendo um "ramo da história da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma".27 Essa área de estudo possui seus limites, uma vez que ela fornece os dados e informações imprescindíveis para a análise, mas não faz as interpretações. Essa é realizada pela iconologia, que é um método de interpretação dos valores simbólicos que estão vinculados à época em que determinada obra foi produzida.28
As definições de Panofsky nos remetem às discussões de E. H. Gombrich, quando este salienta a importância dos lugares-comuns e também do poder das convenções e das tradições de determinada época e cultura sobre a forma que as obras assumem. Segundo Gombrich, "toda representação se funda em convenções".29 Devemos salientar que as imagens servem de suporte às representações. No nosso entendimento, não podemos utilizar as imagens produzidas pelos viajantes como registros do real, mas sim como uma construção discursiva que foi influenciada pela cultura na qual esses artistas viajantes estavam inseridos, bem como pelas convenções estéticas e pelas possibilidades técnicas disponíveis na época. Isso não significa dizer que essas obras não podem ser utilizadas como fontes, mas sim que elas não podem ser tomadas como o real, como uma imagem fidedigna que possui um caráter comprobatório. Outro ponto para o qual gostaríamos de chamar a atenção é que todos os documentos devem ser inseridos e problematizados no seu contexto de produção, e isto também se aplica às imagens produzidas pelos artistas viajantes.30
Ao analisarmos uma imagem produzida por artistas viajantes, devemos considerar vários aspectos, tais como a formação do artista viajante, a forma como ele produziu seu trabalho e as possibilidades técnicas com as quais podia contar, as influências estéticas européias, bem como outras influências, que podiam ser científicas ou morais. Louis Choris optou por um tipo de representação artística da ilha de Santa Catarina e de seus habitantes. Sua escolha priorizou a representação da natureza, com seus tipos específicos que melhor representavam a flora e a fauna da região. Mas, ao mesmo tempo, seus trabalhos reproduzem, de forma marginal em algumas das imagens e no centro das atenções noutras, os tipos humanos que viviam na região. Esses foram representados de forma estereotipada, reforçando uma imagem já existente na Europa. O viajante empreendia sua viagem por regiões desconhecidas portando uma postura ambígua: êxtase diante da beleza e do diferente e temor quanto ao desconhecido e aos perigos que iria enfrentar. Esses sentimentos confluem para formar experiências mentais que influenciam de certa forma o olhar, uma vez que este sentido não é mecânico, objetivo, mas subjetivo e fluido. Plínio, autor grego, já chamava a atenção para essa característica do olhar: "a mente é o verdadeiro instrumento da visão e da observação, os olhos funcionam como uma espécie de veículo, que recebe e transmite a porção visível da consciência".31 Desse modo, para analisarmos uma imagem, seja ela uma pintura, uma fotografia, ou um filme, não podemos nos ater somente ao que estamos vendo, ao que estamos enxergando. Precisamos analisar o momento de produção dessa imagem, as influências sofridas pelo artista, os interesses estéticos do período, as possibilidades técnicas disponíveis e também o público para quem o produto artístico era direcionado. Em resumo, não podemos considerar a obra como isolada do contexto em que ela foi produzida.

NOTAS
1 As discussões presentes neste artigo foram desenvolvidas em minha tese de doutorado: A Lupa e o Diário: História Natural, viagens científicas e relatos sobre a Capitania de Santa Catarina (1763-1822). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. [ Links ]
2 A existência de duas datas deve-se, provavelmente, ao fato de o Império Russo, onde nasceu Choris, utilizar o calendário Juliano e não o Gregoriano, como no Ocidente. O primeiro tem um atraso de 13 dias em relação ao segundo, e seu uso se manteve até janeiro de 1918.
3 TAUNAY, A. d'E. Cinco peças da velha Iconografia Catarinense. In: Anais do Primeiro Congresso de História Catarinense. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950. v.II, p.124-39. [ Links ]
4 CHENET, F. L'artiste chargé de mission. Le rôle de l'artiste dans quelques missions scientifiques. In: MOUREAU, F. (Org.) L'oeil aux aguets ou l'artiste en voyage. Paris: Klincksieck, 1995, p.136-7. [ Links ]
5 FREITAS, M. V. de. Charles Frederick Hartt, um naturalista no Império de Pedro II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, p.120-4. [ Links ]
6 Segundo Michel de Certeau "as pinturas medievais ou renascentistas representavam a cidade vista em perspectiva por um olho que no entanto jamais existira até então. Elas inventavam ao mesmo tempo a visão do alto da cidade e o panorama que ela possibilitava. Essa ficção já transformava o espectador medieval em olho celeste". CERTEAU, M. de. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad.: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1996, p.170. [ Links ]
7 MARX, M. Olhando de cima e de frente. Revista USP, São Paulo, n.1, p.173-4 (mar./maio 1989). [ Links ]
8 SALGUEIRO, V. Vistas urbanas nos álbuns ilustrados por viajantes europeus do século XIX. Tempo, Rio de Janeiro, v.4, p.103, 1997. [ Links ]
9 PINAULT, M. Le peintre et l'histoire naturelle. Paris: Flammarion, 1990, p.10. [ Links ]
10 SALGUEIRO, V., op. cit., p.109.
11 "Dentre estes lugares-comuns destaca-se a divisão tripartite do espaço pictórico, convenção herdada da arte de paisagem do norte europeu, com suas distâncias bem marcadas em planos — plano da frente, plano do meio, plano do fundo —, cujo primeiro plano foram abordados os aspectos de singularidade e localidade também de nossas paisagens, esquema figurativo que tão bem serviu ao sentido cênico da paisagem do viajante." SALGUEIRO, V., op. cit., p.116.
12 GOMES, E. T. A. Natureza e cultura: representações na paisagem. In: ROSENDAHL, Z.; CORRÊA, R. L. Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001, p.66. [ Links ]
13 SAUER, C. O. A morfologia da paisagem. In: ROSENDAHL, Z.; CORRÊA, R. L. Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998, p.23-4. [ Links ] Para entender melhor as discussões correntes entre os estudiosos da geografia sobre paisagem, ver as coletâneas organizadas por ROSENDAHL, Z.; CORRÊA, R. L. Paisagem, tempo e cultura e Paisagem, imaginário e espaço. Foram publicados em vários volumes pela Editora da UERJ, nos anos de 1998 e 2001, respectivamente.
14 GOMES, E. T. A., op. cit., p.56.
15 Optamos por manter a numeração original do álbum, feita em números romanos. A prancha I retrata uma cena que se passa no convés do barco.
16 CHORIS, L., op. cit., p.245.
17 Salomon Gessner .foi escritor, desenhista, pintor e editor de Zurique. Contribuiu para a redescoberta da natureza, combinando tradição bucólica literária ao modo de sentir moderno, à sensibilidade do século XVIII que valorizava a fraternidade, a solidariedade e o desejo de harmonia. Ver: www.letras.up.pt/upi/ilc/vilasboas6.pdf, acesso em: 18.11. 2004.
18 PINAULT, M., op. cit., p.245-6.
19 KURY, L. Os três reinos da natureza. In: MARTINS, C. (Org.) O Brasil redescoberto. Rio de Janeiro: Paço Imperial/Minc IPHAN, set./nov. 1999, p.30. [ Links ]
20 CHORIS, L., op. cit., p.246.
21 Ibidem, p.246.
22 As pranchas 69 e 70 estão com as legendas erradas. Por isso não sabemos qual foi a denominação dada por Debret ou pela editora que as publicou. Escolhemos esse nome por ser o que melhor descreve a imagem reproduzida.
23 Debret produziu sua vista de Desterro entre os anos de 1819 e 1826. Choris produziu entre os anos de 1815, quando esteve na região Sul do Brasil, e 1822, quando foi publicado o trabalho onde estão reproduzidas as pranchas.
24 CHORIS, L., op. cit., p.244.
25 BELLUZZO, A. M. de M. O Brasil dos Viajantes. v.3: A construção da paisagem. São Paulo: Metalivros; Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1994, p.83. [ Links ]
26 Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil reproduz várias das imagens produzidas pelo artista. Foi publicada numa edição de luxo, sob os auspícios de Raimundo Castro Maya, detentor dos direitos de reprodução de seus desenhos, litografias e aquarelas. Nessa obra estão reproduzidas as imagens referentes à Capitania de Santa Catarina, que foram produzidas, provavelmente, entre os anos de 1819 e 1826. Uma cópia dessa edição encontra-se na Seção de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual de Santa Catarina, em Florianópolis. Ver: DEBRET, J. B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Paris: R. de Castro Maya, 1954. [ Links ]
27 PANOFSKY, E. Significado nas artes visuais. Trad.: Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. 1.ed. 1955. São Paulo: Perspectiva, 1991, p.47. [ Links ]
28 Ibidem. p.53.
29 GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Trad.: Raul de Sá Barbosa. 1.ed. 1959. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.26. [ Links ]
30 MENESES, U. T. B. de. Morfologia das cidades brasileiras. Introdução ao estudo histórico da iconografia urbana. Revista USP, São Paulo, n.1, p.152-3 (mar./mai. 1989). [ Links ]
31 Plínio apud PANOFSKY, E., op. cit., p.15.


Fonte: SCIELO - Revista Brasileira de História
ISSN 0102-0188 versão impressa.

Disponivel:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882005000100009&lng=pt&nrm=iso