Escola e Mercado: a escola face à institucionalização do desemprego e da precariedade na sociedade colocada ao serviço da economia
Ramón Peña Castro
Resumo
O artigo propõe uma pauta de análise das relações entre educação, qualificação e emprego no capitalismo globalizado. Tenta demonstrar a incompatibilidade existente entre a desvalorização do trabalho, decorrente da dominação autocrática do capital mundializado; questiona a suposta valorização da educação na sociedade dita de conhecimento; critica o processo de empresarialização da educação pública, inspirado em um determinismo tecnológico e o economicista, o qual se manifesta em uma série de fórmulas ideológicas auto-referenciadas, que se pretendem originais. Propõe-se uma reflexão sobre a nova centralidade do trabalho e os novos critérios de qualificação, atentando para a diferença entre qualificação do trabalhador e qualificação ou classificação autocrática dos empregos ou postos de trabalho por parte das empresas.
Palavras-chave
Senso comum. Desemprego. Educação para o trabalho.
Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos- UFScar. Ph. D. em Economia Política, Universidade de Moscou (1973)
Ramón Peña Castro
"Se miente mas de la cuenta/y por falta de fantasía/ tambien la verdad se inventa” ( Antonio Machado,Proverbios y cantares XLVI)
As colocações que seguem discutem uma das grandes pseudoevidências do senso comum, subproduto do credo neoliberal do mercado absoluto e da "mal chamada" sociedade do conhecimento: a idéia do advento de uma era de pós-trabalho e de centralidade da educaçãocomo o bem-capital mais importante. Essa suposta mudança “epocal” de sociedade é atribuída ao poder demiúrgico das novas tecnologias informáticas e da globalização dos mercados financeiros, dois fenômenos que são apresentados como traços paradigmáticos do novo mundo, unificado e uniformizado, servindo, igualmente, como suporte epistemológico do “pensamento único”. Mercado e comunicação (ou infor mação, como dizem os midiatólogos) são as palavras-chave desta nova era, cujos paradigmas ou modelos de referência estão destinados a convencer as classes subalternas que não existe alternativa, que é inevitável a adaptação e a submissão resignada à lógica impiedosa do mercado total, em particular nas esferas do trabalho e do ensino.
Os mercados globalizados com base nas telecomunicações são apresentados como expressão suprema do conhecimento, reduzido a sua dimensão instrumental e comercial. Sob essa forma de utilitarismo vulgar, o mercado, invólucro genérico do capital, passa a comandar os critérios de classificação dos empregos ou postos de trabalho. O mercado, máscara do capital, homologa, de fato, as qualificações e define o valor-preço da força de trabalho, assim como as modalidades do uso mais completo possível da mesma, modalidades disfarçadas com o eufemismo “flexibilização”. Tal é o verdadeiro sentido das teorias e práticas neoliberais de “gestão da mão de-obra”
Em correspondência com isso, as classes dominantes procuram a transformação da escola em uma empresa “flexível”, produtora de trabalhadores dotados de “competências”. Termo ambíguo destinado a naturalizar a autocracia empresarial que define a seu bel prazer aptidões (técnico-profissionais) e atitudes (comportamentais psico-sociais e gestuais) Isto supõe um sistema de ensino regido pelos princípios de eficiência, competitividade e flexibilidade, em um processo taylorista de formação acelerada de operadores multifuncionais, disciplinados, estandardizados e facilmente recicláveis, isto é, disponíveis para serem utilizados de forma fluida, conforme a demanda variável (em tempo e lugar) do empregador. Eis o papel que o mercado onipresente atribui à escola: formar ou, melhor, “formatar” um tipo de trabalhador adequado ao modelo de produção fragmentada de valor excedente, assente na redução dos custos tanto do trabalho vivo, como do trabalho pretérito, incorporado nos meios de produção (hard e soft ou tangíveis e intangíveis) A “produção” exigida dos sistemas de ensino e formação, denominada “recursos humanos”, está constituída por operadores de equipamentos produtivos e de prestadores dos mais variados serviços empresariais ou pessoais. Pode-se verificar que o emprego dos “recursos humanos” reveste diferentes formas de contratação e de utilização efetiva da capacidade ou força de trabalho humana, no que diz a respeito de local, tempo, horários, intensidade de esforço e condições ambientais e sociais de realização do trabalho produtor de valores de troca. Trata-se, portanto, de relações mercantis e monetárias sob formas diferentes: assalariadas e não-assalariadas. No Brasil predomina, nas últimas duas décadas, uma clara tendência de redução do assalariamento “com carteira assinada” e aumento do desemprego e das ocupações “sem carteira assinada” (POCHMANN, 1999,p. 65). Essa última modalidade, chamada “informal”, envolve uma grande variedade de categorias sociais que mistura desde profissionais com nível superior até biscateiros e vendedores ambulantes, em procura de refúgios contra o desemprego e miséria. Cabe salientar que a de redução do assalariamento contribui para ocultar ou dissimular a exploração capitalista, porque dissocia a produção de trabalho e valor excedente da sua apropriação pelo capital, operando, assim, uma transfiguração que transfere para as esferas da circulação e da “justiça comutativa” as operações de uso produtivo de capacidades humanas de trabalho (forças de trabalho), aparentemente autônomas, mas, de fato, inseridas tangencialmente no movimento global de valorização do capital. Para invisibilizar a apropriação do trabalho excedente dos não assalariados, os funcionários ideológicos do capital substituem conceitos com clara conotação social e política, como capitalismo, trabalho assalariado e classe operária, por termos técnicos, socialmente assépticos, como operador, fornecedor, empreendedor, autônomo, consumidores e titulares de cartão bancário (classificados, segundo o nível de renda, em “classes” A, B, C...).
Incompatibilidade entre a desvalorização (efetiva) do trabalho e a valorização (ilusória) da educação Para ser funcional à nova estratégia de pleno controle do capital sobre o trabalho produtor de valores de troca e à necessária dissimulação ideológica desse domínio, hoje totalitário, o sistema de ensino é convocado a fornecer formação continuada ou educação permanente de novas “competências”. Trata-se, a rigor, de pacotes de formação profissionalizante sob encomenda, isto é, formação acelerada e utilitária para o desempenho de postos de trabalho, continuamente redesenhados pelas empresas, em função da sua estratégia competitiva variável. Em outras palavras, uma formação flexível para sujeitos semi-automatizados, chamados a desenvolver um trabalho fluido, que permita minimizar o custo unitário da produção ou serviço fornecido. A escola empresarializada recebe, assim, a encomenda de produzir operadores com “competências” variáveis, isto é, um “novo tipo de trabalhador”: multifuncional, intercambiável e descartável, segundo o modelo de fast food, utilizável na quantidade, no lugar e pelo tempo desejado pelo comprador. Forma parte dessa estratégia a transferência para o Estado e/ou para os próprios trabalhadores (forçados a competir impiedosamente entre si, em prol de uma empregabilidade escorregadia dos custos da formação permanente. Ao mesmo tempo, a crescente individualização ou atomização darelação aluno/professor, propiciada (mas não provocada) pelo uso da pedagogia informatizada, contribui ao isolamento dos indivíduos, favorecendo a passividade social e a despolitização das classes exploradas. Contudo, a classe empresarial não se satisfaz com uma adequação qualquer do ensino público ao chamado mercado de trabalho; exige a mercantilização ampla, geral e irrestrita do ensino porque considera que:
a) a as despesas em educação e formação profissional são “investimentos estratégicos vitais para o sucesso das empresas”;
b) é insuficiente, e deve ser ampliada, a influência do empresariado na definição dos programas de ensino;
c) lucro deve ser o critério orientador dos sistemas de ensino empresarializados;
d) reconhecimento da necessidade de ensino permanente, como novo fator da reprodução da força de trabalho, favorece a ampliação do mercado de ensino;
e) a perspectiva evidente de expansão das telecomunicações, promete lucros fabulosos para o negócio da teleducação
f) as novas tecnologias informáticas computadorizadas (TIC), ao permitirem a expansão ilimitada do ensino a distância, fornecem uma sólida base para a implantação de uma grande indústria privada do ensino, assistido por computador.
Tudo isso parece desenhar um futuro promissor para a produção e venda de bens pedagógicos (computadores, equipamentos periféricos, serviços de provedores de acesso as ciber-estradas, programas didáticos atualizáveis, entre outros) adquiridos e utilizados por clientes que estudam a domicílio, a custa do seu tempo livre e do seu dinheiro. Em concordância, os empresários do ensino e seus agentes políticos e ideológicos brasileiros procuram ampliar o mercado educativo com a ajuda do atual Governo que se pretende “pós” neoliberal e cujo Ministério de Educação alumbrou a singular idéia de “estatizar”, pagando com dinheiro público, vagas ofertadas pelas empresas de ensino mercantilizado. Essa estatização pelo reverso longe de diminuir, como afirma o Governo, aprofunda as desigualdades sociais, porque além de engordar o negócio privado de ensino, aumenta a segregação educacional das grandes maiorias que não têm, nem terão, acesso à escola de mercado. Cria-se, assim, uma situação paradoxal: a mesma população que, segundo as estatísticas oficiais, teria atingido níveis de escolarização mais elevados que no passado, sofre as conseqüências do crescente desemprego e subemprego, indicadores claros da desvalorização capitalista do trabalho manual e intelectual, acelerada pela furiosa ofensiva neoliberal contra os direitos sociais (solenemente proclamados na Constituição de 1988) e pelas “reformas” dos precários “bens sociais” ainda existentes (ensino, saúde, previdência). Para o pensamento empresarial o problema da indigência educacional (a baixa qualidade do ensino obrigatório público) é visto, igual a outros problemas sociais (saúde, moradia, previdência), como uma fatalidade natural ou, na visão mais tecnocrática, como uma “disfunção” técnica devida ao “insuficiente desenvolvimento dos mecanismos do mercado”.A inconsistência dessa explicação resulta evidente quando consideramos os fatos. Acontece que sendo a maior parte dos empregos
disponíveis pouco qualificados (além de contratualmente precários e mal remunerados) resulta inevitável que aumente a divergência entre oferta e procura de qualificações, isto é, a divergência entre as crescentes taxas médias de escolaridade (confundida com qualificação) dos trabalhadores e a declinante qualificação da maioria dos empregos ofertados. A demanda de novas qualificações que exigem maior tempo de escolarização representa uma pequena parcela do chamado “mercado primário” ou núcleo privilegiado do mercado de trabalho. Certamente estas divergências desmentem claramente a retórica oficial sobre a centralidade da educação, cuja modernização é apresentado como remédio mágico para o problema do crescimento econômico e do desemprego, como a via para a superação do suposto atraso entre oferta e procura de forças de trabalho “flexivelmente” qualificadas.
Assim, a estratégia educacional “competitiva” parte de um pressuposto falso: a correlação direta e automática entre o nível de escolaridade (identificado sumariamente com o nível de qualificação dos trabalhadores) e a demanda do mercado de trabalho, em termos de estrutura qualificativa dos empregos existentes. As evidências empíricas indicam que a maioria dos empregos disponíveis não requerem qualificação elevada. Assim, segundo Pochmann (2001, p.72), a principal ocupação criada nos anos 1990 foi o emprego doméstico, responsável por 23% de todas as vagas abertas. Logo depois vem a ocupação de vendedor, que respondeu por 15% do total de postos de trabalho abertos, seguido da construção civil (10%), dos serviços de asseio e conservação (8%) e dosserviços de segurança (6%)1. Contudo, parece evidente que a relação do sistema de escolarização com o volume e a estrutura do emprego é hoje mais complexa que no passado, como demonstra o fato de que a escolaridade dos desempregados vem aumentando sem que isto provoque uma redução significativa das elevadas taxas de desemprego. Em razão disto, resulta ilusório supor que o problema do desemprego possa ser amenizado por meio do aumento dos índices de escolarização. A origem dessa ilusão está no credo neoclássico2 , segundo o qual as causas últimas do desemprego estão situadas no próprio mercado de trabalho; um velho dogma reeditado pela pseudo-teoria neoliberal do “capital humano”, para dissimular a natureza socialmente regressiva que acompanha o processo de acumulação capitalista. Por outro lado, é preciso lembrar que a tendência geral ao aumento do tempo médio de escolarização não se explica apenas, nem principalmente, pelo hipotético aumento das exigências de qualificação dos empregos disponíveis; deve-se, talvez em maior grau, ao crescimento das demandas de escolaridade como instrumento competitivo entre os próprios trabalhadores e também à demandas “extra-econômicas”.De fato, a gradativa expansão da escolaridade obrigatória não pode ser atribuída exclusivamente às crescentes exigências de escolaridade dos empregadores; depende também do aumento das exigências humanas de conhecimento do seu entorno natural e social, assim como das estratégias oficiais de enquadramento de crianças e jovens e da necessidade oficial de dissimulação das elevadas taxas de desemprego, em particular do escandaloso desemprego juvenil. Sem esquecer, igualmente, o inquestionável poder simbólico dos diplomas escolares, o qual persiste apesar da queda efetiva do seu valor de mercado (inflação de diplomas de diferentes tipos). A desvalorização econômica do trabalho, expressada no desemprego e na precarização das relações de trabalho, erosiona as funções realmentesocializadoras da escola e não apenas a sua função econômica, oficialmente absolutizada, de preparação para o chamado mercado trabalho. Por essa razão, a escolarização deixou de ser um instrumento eficiente de urbanização de jovens de origem rural e perdeu também força como instrumento de mobilidade social e de configuração profissional da classe trabalhadora. No caso brasileiro, o processo de mercantilização do ensino, que avança incentivado pela orientação economicista do Governo, enfrenta ainda fortes resistências na sociedade. E os sistemas de educação pública e de credenciamento estatal das titulações continuam sendo, para a grande maioria da população, uma das poucas expressões tangíveis dos precários direitos sociais e da cidadania formal.
Tudo indica, portanto, que a explicação da desvalorização do trabalho e da escolarização requer ultrapassar a aparência enganosa da chamada diver- gência entre demanda e oferta de qualificações; requer penetrar no terreno mais compreensível das contradições sociais do trabalho e da educação do capitalismo realmente existente. Nesta perspectiva, a crise do sistema de escolarização deve ser entendida como um dos resultados e manifestações da grande transformação histórica em andamento, cujo epicentro é o trabalho produtor de mercadorias e cuja força motriz são as exigências da produção de valor excedente, nas novas condições sociais do capitalismo, sob comando financeiro, organização flexível da produção e competitividade total.
Dentro desse quadro, o debate sobre a suposta centralidade da educação só tem a ganhar com a crítica do discurso oficial que apregoa una genérica formação permanente de qualificações multiadaptavéis para aumentar a chamada “empregabilidade”. Neologismo “ao serviço de um truque”, segundo a feliz observação de Gaspari, (1998), porque o termo “empregabilidade” repassa o ônus do desemprego para quem o sofre. Desse modo, o discurso oficial parafraseia Malthus ao deixar entender nas entrelinhas que “a principal causa do desemprego é a ignorância dos desempregados”, idéia antiga que o pensamento pós-moderno complementa com a chamada “rigidez excessiva da legislação trabalhista”, exigindo o rebaixamento das relações de trabalho à simples transação, administrada somente pelo mercado e pelo direito comercial. Todavia, o truque da “empregabilidade” esconde algo mais profundo, que é a tentativa de autonomizar tanto a esfera do trabalho como a esfera da educação, dissociando-as do contexto histórico, o único que as torna compreensíveis. Esse conteúdo histórico concreto decorre do poder oligopólico dos grandes agrupamentos financeiros que decidem as prioridades tecnológicas, econômicas e sociais, configurando a nova ordem mundial imperialista. Não há dúvida de que as transformações históricas (tecnológicas, econômicas e sociológicas) têm como epicentro o trabalho produtor de mercadorias e é, justamente, por isso que as relações de trabalho assalariado estão sofrendo profundas mutações, tanto do lado da força de trabalho como do lado do capital. Do lado do trabalho, precarizam-se as ormas de contratação da força de trabalho, intensifica-se a sua utilização (exploração), individualizam-se e degradam-se as formas de remuneração e privatizam-se, cada dia mais, as condições de reprodução da força de trabalho. Do lado do capital, mudam-se as estruturas tecnológicas eorganizacionais da produção capitalista sob o comando de grandes grupos financeiros globalizados que, para garantirem elevados lucros financeiros, dispõem de uma série de instrumentos técnico-organizacionais e políticos que, operando em escala planetária, garantem a redução dos “custos do trabalho” e o subseqüente aumento do valor excedente (mais-valia). A força de trabalho perde, por isso, os últimos vestígios de controle sobre o processo produtivo desde o momento em que os meios de produção exigem sempre menos trabalho vivo para serem operados e as máquinas “cerebralizadas” confiscam (mecanizando-as) novas parcelas de trabalho intelectual. Ao mesmo tempo, cabe lembrar que os novos meios de produção de base micro-eletrônica apresentam, a um só tempo, maior grau de autonomia funcional com relação à força de trabalho, mas também maior complexidade e vulnerabilidade, pelo fato de funcionar como sistema integrado de máquinas auto-comandadas (“informatizadas”), o que provoca uma redução progressiva do emprego total (e aumento do desemprego), assim como propicia uma nova hierarquia das ocupações de direção, administração e produção. Por essa razão, a nova base tecnológica demanda crescentes doses de trabalho intelectual “morto” e, em proporção menor, trabalho intelectual “vivo”. O primeiro (trabalho intelectual “morto”) materializado em sistemas automatizados (hard),cujo funcionamento requer um estoque crescente de soft (programas operacionais codificados em linguagens lógicas); o segundo, trabalho intelectual “vivo”, personificado por novas categorias de especialistas. A importância ou centralidade deste trabalho vivo (cujo peso não é proporcional ao volume e potência dos novos meios de produção corpóreos– hard – nem aos incorpóreos – Soft) longe de diminuir, está aumentando devido ao crescente papel da “organização científica” dos processos de concepção, produção e circulação de mercadorias. Neste contexto, as novasconfigurações do trabalho intelectual dependente do capital, cuja base mate-rial são os modernos meios de produção privadamente apropriados, não podem deixar de reproduzir, em níveis mais elevados, a contraposição tradicional entre trabalho coletivo alienado e poder privado do capital. Os novos componentes do trabalho intelectual “morto” (meios de produção) e do trabalho intelectual “vivo” (forças de trabalho) mudam a configuração do “trabalhador total” ou “trabalhador coletivo”, produtor de valores de troca (bens tangíveis e serviços), cujos componentes individuais só têm o emprego garantido se se mostrarem aptos para produzir um valor superior ao seu custo, ou seja, como produtores de mais-valia. Pode-se, assim, concluir que as alterações ocorridas nos dois pólos da relação de produção capitalista (capital e trabalho) não modificam a centralidade do trabalho assalariado; ao contrário, essa relação fundante da sociedade capitalista tornou-se ainda mais profunda e abrangente pela incorporação à órbita do capital de uma diversidade de formas de trabalho produtor de mercadorias. Referimo-nos às formas de trabalho temporário, trabalho a tempo parcial, prestação individual de serviços terceirizados ou subcontratados. O mal chamado trabalho autônomo envolve a generalidade dos “prestadores de serviços”, incluindo desde produtores de ciência, cultura, informação, saúde corporal e espiritual, até produtores de “bens” socialmente proscritos: lobystas ou traficantes de influências e votos, mercadores de armas, narcotraficantes, entre outros. Não se pode esquecer, igualmente, a aberrante persistência, ampliada e não por acidente, do trabalho escravo, sintoma claro de uma ordem criminal de desintegração da vida social e prova adicional da incompatibilidade essencial entre a lógica capitalista do máximo lucro e a universalização de regras de vida social, autenticamente humana. O fato de que muitas das novas formas de trabalho percam a tradicional conotação de trabalho assalariado, não impede a sua funcionalidade na produção de valor excedente, susceptível de ser apropriado pelo capital no processo de circulação. Pode-se afirmar que a reativação de formas arcaicas (desde o trabalho semi-escravo até as mais variadas formas de servidão doméstica) convivem e complementam a novas formas de trabalho que, a um só tempo, potencializam e invisibilizam a natureza exploradora e alienante do trabalho capitalista, produtor de valor de troca incrementado.
Nova centralidade do trabalho e novos critérios de qualificação do trabalho
Na visão neo-racionalista, difundida a partir dos anos de 1970 por uma série de pensadores reformistas europeus (Offe, Habermas, Gorz, entre outros), o trabalho assalariado teria deixado de ser o fundamento estruturante da sociedade moderna. De onde se segue que o trabalho também teria deixado de ser fundamento estruturante da educação. Como jáfoi dito, as mudanças tecnológicas, sendo aptas para garantir abundância material com uma despesa cada vez menor de tempo de trabalho vivo, provocam, no capitalismo realmente existente, desemprego e miséria cresentes para uma parcela cada vez maior da população, além de uma depredação irrecuperável da natureza.Em tais condições, o trabalho, que até o presente foi o vínculo unitivo social mais abrangente e acessível, transforma-se em um “bem escasso” e no maior problema social dos nossos dias. As sociedades modernas conhecem, assim, uma nova e profunda ruptura que separa os que gozam o direito a trabalhar de uma crescente massa de pessoas excluídas desse direito, o que provoca a crise de todas as formas de “sociabilização” ligadas ao trabalho: família, empresa, sindicato, Estado social e sua expressão mais genuína, o sistema escolar. Nestas condições resulta descabido falar de centralidade da escola fundada em algo que é, justamente, o epicentro da crise: o trabalho. Não há como demonstrar que a escola pode vir a ser a força propulsora de uma “pós-modernidade”, construída a golpes de mercado e com tecnologias empresariais desempregadoras.. A suposta perda de centralidade do traba-lho produtor de mercadorias é a base de novas mistificações ideológicas que apregoam a “subjetivação do trabalho” e o poder do “agir comunictivo”. Estes exercícios de imaginação não podem ocultar a cruel realidade da desvalorização efetiva e crescente do trabalhador assalariado. A raiz dessa inversão da ordem humano-social reside, segundo Marx, na separação que o capitalismo aprofunda: entre o trabalho e o ser humano trabalhador. O trabalho mercantilizado (realização das capacidades humanas de produzir determinado efeito útil) está comandado, como qualquer outra mercadoria (bens de produção e bens de consumo), pelo valor de troca, no qual todas as qualidades concretas são anuladas em nome de uma única e abstrata qualidade: o preço ou forma monetária de expressão desse valor abstrato. Esta redução do trabalho vivo a valor de troca aparece, graças a sua forma mercantil-monetária, como uma simples transação comercial entre partes formalmente livres e iguais, isto é, como um ato perfeito de “justiça comutativa”. Porém, essa aparente igualdade oculta uma realidade essencialmente desigual: o consumo ou a exploração do trabalho vivo, mediante a utilização, mais completa possível, das três diferentes formasem que o mesmo se efetiva: “subjetiva, ativa e individual.” (MICHEL, 1990).
Notas
1 As empresas de vigilância particular empregam no Brasil um contin-gente de 2,5 milhões de vigilantes, muitos deles armados. Só no Estado de São Paulo, estima-se que operam umas l.600 empresas de vigilância privada, das quais, aproximadamente, l.200 seriam irregulares(“Insegurança privada”, editorial da . Folha de S. Paulo, de 12/5/2004)
2 O credo neoclássico “repousa – segundo Bourdieu (2001, p. 32), numa filosofia da ação, o individualismo metodológico, que não quer e não pode conhecer senão as ações ciente e conscientemente calcu-ladas de agentes isolados, visando fins individuais e egoístas”.
3 Vide Bourdieu, (2001, p. 31)
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