Os vencedores do movimento político-militar que derrubou João Goulart em 31 de março de 1964, sempre se referiram a si como "revolucionários". Segundo eles, de maneira alguma poderia dizer-se que o que havia ocorrido era um golpe militar como tantos outros que ocorreram entre os vizinhos do Brasil, mas sim o começo de uma verdadeira revolução que não apenas salvou o Pais do comunismo internacional como igualmente fez o País, livre do populismo e da ameaça esquerdista, ingressar na verdadeira modernidade, capitalista e ocidental.
Militares tomaram o poder à força em 1964Foto: Reprodução
Os derrotados, por seu lado, para desqualificar os adversários vitoriosos, nunca deixaram de tratar os eventos de março de 1964 como um golpe militar patrocinado pelos norte-americanos, colocando-o entre os tantos outros que infelicitaram a história da América Latina. Típica posição tomada pelo autor do livro O golpe começou em Washington, do jornalista Edmar Morel (Editora Civilização Brasileira, RJ, 1965).
Mas afinal "1964" foi uma revolução ou uma contra-revolução?
De certo modo, ambos estão certos e ambos estão equivocados. Na concepção clássica, a palavra revolução é entendida como um movimento político radical e violento que remove à força, em geral por meio de uma guerra civil sangrenta, as classes dirigentes tradicionais, arrancando-as do governo e substituindo-as por uma outra força, composta pela nova geração emergente. Isso ocorreu na Revolução Americana de 1776 e durante a Revolução Francesa de 1789, ocasião em que a monarquia absolutista foi derrubada e a velha nobreza europeia viu seus privilegios ruírem.
Evidentemente que o movimento político-militar de 1964 não promoveu nada disso. Em nenhum momento ele deixou de ser amparado pelas classes dominantes brasileiras (os empresários, os latifundiários e fazendeiros, e as grandes corporações estrangeiras) e mesmo pela Igreja Católica (pelo menos até 1968). O que fez de imediato foi afastar o núcleo dirigente que cercava então o presidente João Goulart e, posteriormente, estendeu o seu raio punitivo, com o recurso às cassações e outros instrumentos repressivos, a outros setores da sociedade brasileira (líderes sindicais e partidários, jornalistas, intelectuais, artistas, acadêmicos, estudantes etc). Mas, passados os anos, observa-se que praticamente os mesmos grupos econômicos, sociais e midiáticos continuam no comando da sociedade brasileira, não ocorrendo pois uma substituição da camada dirigente.
Talvez cabe aceitar-se a palavra "revolução" num sentido mais restrito, naquele que comumente é aplicado às eventuais rebeliões militares na América Latina, os conhecidos "pronunciamientos". Tal reducionismo, todavia, é incorreto, porque 1964 não foi somente um outro golpe militar como tantos outros.
A influência da Sorbone e da sociedade civil
O movimento civil-militar foi solidamente alicerçado nas teorias autoritárias e anticomunistas defendidas e difundidas pela Escola Superior da Guerra (importante instituição fundada em 1949 pelo general Cordeiro de Farias, durante o governo do general Eurico Gaspar Dutra, para adequar o Brasil aos tempos da Guerra Fria). Conhecida no meio militar como a Sorbone, formada por oficiais intelectualizados, entre eles o general Castelo Branco e o coronel Golbery do Couto e Silva, a ESG propunha que a elite civil-militar, nas devidas circunstâncias, devesse assumir o controle da nação brasileira, ainda que por meios excepcionais, para dar um combate mais eficaz à guerra revolucionária e psicológica desencadeada pelos comunistas apoiados por Moscou. Mesmo que isso significasse sufocar as liberdades democráticas ou suspendê-las temporariamente.
Nos anos 60, asseguraram os teóricos da Sorbone, o Brasil estava em vias de mergulhar numa "guerra revolucionária". Os políticos janguistas e brizolistas, junto a seus aliados comunistas, esperavam implantar por aqui uma "nova Cuba", nacionalista, autoritária e antiamericana, apoiada num cinturão de sindicatos sob a liderança da Central Geral dos Trabalhadores (CGT), subvertendo totalmente a ordem social e constitucional do Brasil. Somente poderiam ser detidos por um golpe de força que após faria o realinhamento do País com os valores defendidos pelos Ocidentais (EUA/Europa Ocidental), corrigindo definitivamente a "derrapagem" do governo Goulart para a esquerda.
Houve, como mostrou Renée Armand Dreifuss (A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe, Petrópolis, Vozes, 1981), um enorme apoio das organizações de empresários, comerciantes e banqueiros ao Ipes/Ibad que, aliados às classes médias, temerosas dos comunistas, fizeram uma ampla frente comum com os oficiais conservadores e com a Igreja Católica contra o governo de João Goulart. Criaram por isso mesmo um conjunto de instituições paralelas ao governo janguista para desestabilizá-lo e em seguida derrubá-lo.
Não só colaboraram para o sucesso do golpe, como depois, ao longo dos 20 anos seguintes, as classes proprietárias sustentaram abertamente o partido do governo, a Arena (Aliança Renovadora Nacional, fundada em 1965). Foram as classes proprietárias em geral as principais beneficiadas com o crescimento material do País na época do "Milagre Econômico", entre 1970-74. Política esta defendida pelo famoso ministro Delfim Netto, o economista que afirmou "primeiro é preciso fazer o bolo crescer para depois dividí-lo".
A participação americana
É um tanto simplista afirmar que o movimento político-militar de 1964 resultou de um teleguiamento norte-americano, de uma grande conspiração dos serviços de espionagem dos EUA, especialmente da CIA, representada na ocasião pelo coronel Vernon Walters (um notório especialista na deposição de regimes suspeitos aos interesses norte-americanos e amigo do general Castelo Branco). O peso de uma ação golpista coordenada do exterior somente tem eficácia se ela estiver fortemente ligada aos interesses internos de parte considerável da sociedade do país visado (basta verificar o caso de Cuba por ocasião do desembarque organizado pela CIA na baía dos Porcos, em abril de 1961, que fracassou rotundamente por falta de apoio interno). Assim, nada do que os serviços secretos americanos, articulados com o Departamento de Estado, pudessem fazer, teria resultado significativo se não contassem com uma parte considerável da opinião pública e dos oficiais das Forças Armadas brasileiras unidos na deposição do governo Goulart.
Observa-se também que a instalação de um Estado de Segurança Nacional no Brasil, em substituição ao Estado Democrático de Direito (que vingou de 1946 a 1964) não se limitou ao regime militar de 1964. Especialmente a partir da ditadura Médici o Brasil serviu como exemplo de sucesso a ser seguido pelos militares dos países latino-americanos.
Modelos variados dela foram, em seguida, impostos por oficiais superiores tanto na Argentina (em 1966 e, novamente em 1976), como no Chile e no Uruguai (em 1973), porque a difusão das teorias revolucionárias guevaristas haviam seduzido parte considerável das esquerdas latino-americanas. Que esperavam alcançar o poder com a ponta do fuzil e não por meio da urna eleitoral.
A ditadura Médici apresentou-se como a solução para liquidar por meios extremos com a subversão e encaminhar uma rápida prosperidade econômica que servia como "anestésico" a qualquer ameaça revolucionária. Serviu por igual para fixar o Brasil definitivamente no modelo econômico do capitalismo ocidental. O "sonho americano" parecia reproduzir-se no Brasil dos anos 70. O que o cidadão médio desejava (automóvel, casa própria e o padrão de consumo próximo aos dos EUA) começou a ser concretizado.
Grupos de guerrilheiros das mais diversas organizações, formados em quase todos os países latino-americanos, inspirados na tese da "luta armada", decorrente da teoria guevarista do foco revolucionário (o foquismo), decidiram partir para a guerra contra seus governos nacionais, fossem ditaduras ou democracias. Atendiam eles ao apelo vindo de Cuba, particularmente de Che Guevara, para que os Andes inteiros se "tornassem uma Sierra Maestra", ou um "novo Vietnã", provocaram uma forte reação militar que, em seguida à formação do Estado de Segurança Nacional, com um brutalidade inaudita, destruíram não somente as guerrilhas como a própria democracia a quem diziam defender.
Mas, afinal, como poderíamos definir o que ocorreu a partir de 1964? O mais correto é afirmar que houve uma contra-revolução cuja inspiração mais remota nos leva ao Levante de 1936, liderado pelo general Francisco Franco contra a República Espanhola controlada pelos esquerdistas. Naquela ocasião os militares igualmente se aliaram à Igreja Católica espanhola e aos falangistas (os fascistas espanhóis) para derrubar, na verdade destruir, um governo eleito democraticamente.
No Brasil, tratou-se de um golpe civil-militar preventivo na medida em que as Reformas de Base, reafirmadas por Goulart no derradeiro discurso de 13 de maio na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, pareciam às classes conservadoras uma espécie de ponta de lança da comunização do País. Para Dreifuss o que ocorreu foi acima de tudo "um golpe de classes", no qual os proprietários, os sacerdotes e os militares impuzeram ao País um Estado Forte.
O fracasso do projeto nacional-populista deveu-se igualmente por outros motivos. A situação do Brasil não era a de um país colonizado como era o caso da ilha cubana. Além disso, o antiamericanismo não se enraizara neste país. Ao contrário, a maioria significativa do povo brasileiro tinha profunda admiração pelos Estados Unidos e seu desejo era poder algum dia atingir a algo parecido com o "modo de vida americano", política que começara a ser implantada por Juscelino Kubitchek (1956-1961), mas que estagnara durante a renúncia de Jânio e a ascensão de Goulart.
Não havia por aqui nenhum ódio reprimido como era o caso dos cubanos em relação aos americanos. Como constatou-se depois, a luta guerrilheira somente prosperou e teve sucesso em situações muito especiais (como foi o caso de Cuba e da Nicarágua), dois países governados por tiranos pró-americanos.
Mesmo tendo sido afastados do poder pelo movimento das Diretas Já, em 1984-5, os militares brasileiros conservaram uma imagem associada ao grande salto econômico que ocorreu entre 1970-1976. Nos dias que correm, a crítica maior concentra-se na violência institucional e nos malfeitos utilizados no combate às oposições (fossem pacíficas ou armadas).
Marcha da Família reuniu cerca de 500 mil pessoas na praça da Sé em 64
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Marcha da Família reuniu cerca de 500 mil pessoas na praça da Sé, em São Paulo, no dia 19 de março de 1964
Foto: CPDoc JB / JB Online
BIBLIOGRAFIA
COMBLAIN, Joseph - A Ideologia da Segurança Nacional, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro. 1978.
DREYFUSS, Rene A. - 1964: A Conquista do Estado, Editora Vozes, Petrópolis, 1981.
MORAES, Dênis - A Esquerda e o Golpe de 64, Editora Espaço e Tempo, Rio de Janeiro, 1989.
MOREL, Edmar - O Golpe Começou em Washington, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965.
PARKER, Phyllis - 1964: O Papel dos Estados Unidos no Golpe de Estado de 31 de Março, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1977.
SILVA, Helio - 1964: Golpe ou Contra-golpe?, Editora Civilização Brasileira, 1975.
SKIDMORE, Thomas - Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-1964), Editora Saga, Rio de Janeiro, 1969.
13.2.15
Brasil 1964: revolução ou contra-revolução?
Fonte: http://noticias.terra.com.br/educacao/historia/brasil-1964-revolucao-ou-contra-revolucao,64ddfd981c915410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html
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