A Inquisição foi um poderoso instrumento que a Igreja Católica desenvolveu para punir os ditos hereges espalhados em diferentes partes do mundo. O Brasil na época colonial apresentava um cenário de muita complexidade nas práticas religiosas que envolviam os “cristãos – novos” e a “verdadeira” Igreja. A prática “secreta” do judaísmo era algo corriqueiro nos “recantos” do “Novo Mundo”. A irreverência prestada aos santos e a rotina religiosa dos “verdadeiros cristãos” criou um enorme desgaste e certa falta de “controle da fé” do “verdadeiro cristianismo”. Para retomar a expansão do caminho da “salvação” a Santa Igreja viu-se na necessidade de convocar a instalação de um Tribunal do Santo Ofício de Lisboa no Brasil. No entanto, foi nesta dimensão que a Inquisição se deparou com a incumbência de identificar o que verdadeiramente resultava dos comportamentos desfavoráveis a Igreja: heresia ou loucura.
As visitações ocorridas no final do século XVI nos revelam uma situação perplexa da Inquisição no sentido de distinguir os acusados por heresia e aqueles que se apresentavam como loucos. Numa ordem natural do processo inquisitorial, os primeiros eram julgados enquanto os portadores de problemas mentais, enviados para “casa de doidos”. Um dos casos deste período aconteceu com André de Freitas Lessa, sapateiro, residente no Recife – acusado de praticar sodomia com jovens em troca de sapatos. Na maioria das vezes, somente a parte dos jovens era cumprida.
O visitador questionou André sobre seus atos, e nesta oportunidade, o sapateiro mencionou que sofria de “enfermidade no miolo”. Dizia ainda, que seus desejos sodomíticos sofriam alterações de acordo com as alternâncias da lua, conforme relato.
“ ... na lua nova se sentia alienado, de modo que algumas vezes em que perpetrara sodomias, estava perturbado do juízo com acidente da lua”.
Em 1595 Lessa foi condenado a 10 anos de galés (uma pena mais “branda” que também era atribuída aos escravos). Sua versão “lunática” não foi aceita pelo visitador que manteve sua sentença. Entretanto, André Sodré, morador na Bahia julgado em 1593 por duvidar do Juízo Final, também apresentou um “diagnostico” similar ao identificar-se como alguém enfermo da cabeça, aluado.
A Inquisição reconhecia a loucura como uma doença que afetava diretamente os “miolos”, os inquisidores não afirmavam que se tratava exclusivamente de heresia. Este parecer não diferia muito do conceito popular com respeito aos doidos, nem tão pouco dos médicos que nesta época praticamente desconheciam doenças mentais.
Os problemas apontados nos deixam pelo menos a certeza de que não configuram nenhuma relação com pactos diabólicos ou casos de possessão. Os primeiros eram vistos pela inquisição como problemas de fé, heresia e, por esta razão, deveriam ser tratados judicialmente em sentenças que iniciavam com punições corporais podendo chegar ao limite da morte na fogueira. Enquanto que os possuídos recebiam o “remédio espiritual” – o exorcismo. Diante deste cenário, a Inquisição demonstrou certa falta de saber que atitude tomar frente aos aluados. Uma vez acreditada a existência de problemas mentais nos loucos, a Inquisição então, mandava-os para casa.
As Alterações nos Regimentos Inquisitoriais do Século XVII
A Inquisição de certa forma, desconsiderava a loucura – os registros dos inquisidores não descreviam detalhes de informações dos “despropósitos”. Em suma, apresentava-se uma constatação superficial de depoimentos e comportamentos alegando que estes não acompanhavam de nenhum sentido, assumindo que por vezes agiam como lunáticos, encerrando assim, os escritos.
Ainda nesta época os regimentos inquisitoriais sofreram importantes alterações. Podemos citar ao menos dois exemplos: em 1613 foi estabelecido que no caso da presença de um preso “contaminado” pela loucura – tal diagnóstico deveria ser averiguado quanto a sua veracidade e, em caso afirmativo, ele seria livrado das penas corporais. Já em 1640, o procedimento foi preservado em sua essência, porém, com um adendo, agora o médico do cárcere deveria acompanhar de perto o comportamento e as reações do acusado. Tudo isto com o objetivo de obter a cura dos loucos, aplicando-lhes os medicamentos necessários e, em último caso, transferindo-os para o Hospital de Todos os Santos, em Lisboa.
Evidente que nesta altura, nem a medicina e muito menos a Inquisição eram profundos conhecedores da natureza do problema. Por outro lado, o é interessante saber da existência – ainda no final do século XVI - de locais que foram destinados para doenças perigosas como a “cada dos doudos” e a “cada das doudas” localizadas no Hospital Real de Todos os Santos. São estes os locais para onde os lunáticos eram encaminhados, inclusive os casos advindos do Brasil. Este fato demonstra pelo menos o prenúncio de certa organização hospitalar para o tratamento daqueles que demonstrassem problemas mentais.
No Brasil Colônia muitos desacatavam os santos, a Virgem e o próprio Cristo – atitudes como estas são justificadas pela inconformidade da religião e pela falta de atendimento do Além em pedidos urgentes. Sacrilégios e blasfêmias eram comuns nesta época, inclusive em outras localidades.
A última visitação ao Brasil ocorrida em 1760, nos trás um caso muito interessante. Trata-se do soldado Francisco José Duarte que ao entrar na capela do forte, em Belém, arrancou uma imagem de cristo e começou a aplicar golpes com uma faca com a intenção de degolá-lo. Francisco foi preso e encaminhado para enxovia do Juízo Eclesiástico onde não fez outra coisa a não ser piorar sua situação praticando imoralidades terríveis frente ao padre que rezava de fronte a sua prisão. Em 1765 Duarte foi encaminhado para Inquisição de Lisboa – lá ele passou por inúmeras sessões com o inquisidor que procurava desvendar a existência ou não de distúrbios mentais com relação às atitudes de Francisco. Mais uma vez a Inquisição acabou desistindo de tentar decifrar o que realmente acontecia com o acusado e acabou transferindo-o para o Hospital Real em 1768 – dois anos depois Duarte faleceu e o caso foi arquivado pela Inquisição portuguesa.
Referência Bibliográfica
Revista de História, artigo: “Heréticos e Lunáticos”, VAINFAS, Ronaldo – Ed. Biblioteca Nacional – RJ, Ano 1 – Nº 2, agosto-2005.
Escrito por:
CRISTIANO CATARIN