A tradição atribuía a organização religiosa de Roma ao rei Numa, um sabino que teria reinado do 716 a 673 a.e.c. e que, dizia-se, teria sido iniciado nas coisas divinas pelo próprio Pitágoras. Já os historiadores romanos se tinham apercebido do anacronismo: como é que o rei Numa que, afirmava-se, vivera no fim do século VIII, podia ter encontrado o filósofo, cuja pregação na Itália Meridional não é anterior a meados do século VI? Mas também se insistiu no fato de o pitagorismo da Magna Grécia reunir elementos religiosos que já existiam antes da vinda do Sábio e nada nos impede de admitir que se tenham atribuído ao pitagórico Numa, práticas, crenças e ritos originários das regiões sabinas, no sentido mais lato, isto é, do interior da Itália Central e Meridional. Numa simboliza formas de vida religiosa diferentes das que se prendem com o rei Rômulo, e que não estão orientadas para a ação - política ou militar - mas para um conhecimento mais desinteressado das realidades sobrenaturais. Assim se exprimia uma das tendências mais vivas da religião romana, e que levava a colher favoravelmente todas as formas do sagrado e do divino. Mas, precisamente por causa desta mesma tendência de que desconfiavam, pois podia conduzir o povo ao desinteresse e a extravagância, os Romanos esforçavam-se por lhe criar mil obstáculos destinados a assegurar a estabilidade da tradição. Numa foi um inovador, mas - como mais tarde Augusto - teve a habilidade do inscrever as suas inovações na linha das crenças ancestrais.
A tradição atribui às reformas de Numa a fundação do Templo do Jano, edifício misterioso situado no extremo norte do Fórum e consagrado a uma divindade de rosto duplo, acerca de cuja natureza os teólogos de Roma se interrogaram longamente. O que é certo é que Jano não é um deus da tradição latina. Além disso, Numa dividiu as funções sacerdotais por vários colégios, em vez de as deixar, como outrora, ligadas apenas à pessoa real. A ele se atribuía a instituição dos flâmines, um dos quais prestava culto a Júpiter e o outro a Marte. Ao fazê-lo, retomava sem dúvida uma tradição indo-europeia, como testemunha o próprio nome destes sacerdotes, que a etimologia compara ao dos brâmanos. Mas, ao lado destes flâminos, Numa criou ou organizou o colégio dos Sálicos, cujas danças guerreiras em honra de Marte são um antiqüíssimo rito itálico, observado em diversas cidades e cujos acessórios, nomeadamente os aneis, escudos de chanfradura dupla, testemunham uma remota influência egéia e provêm da idade dita geométrica da Grécia. Na verdade, a arqueologia revela a presença de escudos chanfrados em diversos pontos da península, cerca de 7OO a.e.c. Mais uma vez, a tradição recolhe a lembrança de um dado real. Numa teve o cuidado de designar um chefe encarregado de velar pelo exato cumprimento dos ritos e de impedir, no futuro, a introdução abusiva de inovações estrangeiras. Este chefe foi o Pontífice Máximo: o nome de pontífice (pontifex) continua a ser para nós um mistério. Os Antigos relacionavam-no com o termo que designa pontes, e os pontífices teriam sido, inicialmente, os "Construtores de pontes", mas parece muito pouco provável que Roma, que durante muito tempo manteve uma comunicação muito precária com a margem direita do Tibre, tenha atribuído um lugar preeminente na vida religiosa a um sacerdote que tivesse por principal função zelar pela transposição do rio. Se assim for, e não tivermos sido iludidos por uma semelhança enganosa, e se os pontífices foram mesmo "construtores de pontes", então estas pontes devem ter começado por ser caminhos (sentido que justifica a comparação com outras línguas do domínio indo-europeu), e a imaginação sugere que estes caminhos talvez tenham sido apenas aqueles que permitiam que a oração e o rito chegassem ao país dos deuses. Mas tudo isto é muito duvidoso. Sugeriu-se também que os pontífices eram sacerdotes "não especialistas", encarregados de celebrar todos os ritos que não coubessem no quadro das atribuições dos outros sacerdotes (flâmines, etc.).
Fosse como fosse, foi no reinado de Numa que os Romanos adquiriram a sólida reputação de piedosos e que ergueram um altar a Boa Fe (Fides), fundamento da vida social e também das relações internacionais, na medida em que fides implica a substituição das relações de força por relações baseadas na confiança mútua. Adivinha-se já o nascimento de uma organização de forma jurídica cuja ambição consiste em regular, de uma vez por todas e de acordo com a ordem do mundo, toda a vida da cidade. Roma pensa-se segundo um sistema total, harmoniosamente inserido no ritmo do universo. Neste aspecto, é significativo que Numa tenha passado, ao mesmo tempo, por grande reformador do calendário: a sua reforma tinha por objetivo fazer coincidir, tanto quanto possível, os ciclos lunares e os ciclos solares. Para tal, imaginou um sistema de meses intercalares que, em vinte anos, conduziria à coincidência de uma dada data com uma posição determinada do Sol.
Referências Bibliográficas
BERNARD, La Conlonisalion grecque de l'Italie méridionale et de la Sicile dans l'Antiquité, l'histoire et la légende: 2 ed., Paris, 1957;
J. WHATMOUGH, The Foundations of Roman Italy: Londres, 1937;
R. BLOCH, Le Mystère étrusque: Paris, 1957;
R. BLOCH, Les Origines de Rome: Paris, 1965.