24.3.15

Revolução Francesa: Varennes, um erro fatal


O episódio da fuga foi uma ruptura que se revelaria sem retorno, com durasconsequências para o monarca (Transferência de Luís XVI e sua família para o Templo em agosto de 1792, gravura,séc. XVIII

Por Olivier Coquard

“Um milagre da imprudência”, na definição de Jules Michelet, a fuga para Varennes é um dos episódios mais abordados (por exemplo, Casanova e a revolução, filme de Ettore Scola) e um dos mais discutidos pelos historiadores. Há dois anos, apareceram quase simultaneamente dois estudos de dois grandes historiadores da revolução, Timothy Tackett e Mona Ozouf.

Encontram-se nessa fuga infeliz todas as peripécias de um cenário excepcional – o que foi imediatamente percebido por todos aqueles que dele participaram, de perto ou de longe, e que deixarem lembranças, por vezes contraditórias, que se juntaram às fontes oficiais.

UM REI NUMA GAIOLA DE OURO

Mantido sob vigilância domiciliar durante quase dois anos, Luís XVI e seu círculo mais próximo, desde as jornadas de outubro de 1789, sentiam-se prisioneiros sob os painéis dourados das Tulherias. Eles foram levados ali por uma multidão tão imperiosa quanto entusiasmada por conduzir a Paris “o padeiro, a padeira e o aprendiz de padeiro” – ou seja, o rei, a rainha e o delfim.

Versalhes havia sido saqueado. O palácio do Rei-Sol tornara-se o ícone de um absolutismo em ruínas, o símbolo do Antigo Regime. O rei não podia mais se entregar a este prazer real que ele amava tanto: a caça. A rainha não podia mais usufruir daquelas festas sedutoras que ela promovia em seu Petit Trianon. A corte não cessava de pressioná-los para fugir – uma tentação à qual tanto um quanto o outro sentiam um desejo irreprimível de ceder...

Os revolucionários, dos moderados aos radicais, convergiam num ponto: em Paris, o soberano não podia ser socorrido ou sequestrado pelos partidos de aristocratas, pelos contrarrevolucionários. De sua presença dependia o êxito da regeneração nacional. Para os mais virulentos, ele era um inimigo.

A imprensa popular, desde Les Revolutions de Paris (As Revoluções de Paris), de Élisée Loustalot, até L’Ami du Peuple (O Amigo do Povo), de Jean-Paul Marat, não cessava de apelar nesse sentido à vigilância das sociedades patrióticas que se haviam multiplicado desde 1789 – a mais célebre e ativa foi o Club des Cordeliers, do qual Danton foi o primeiro grande animador.

Para os monarquistas, a presença de Luís XVI era a garantia do êxito do projeto que eles propugnavam: uma monarquia na qual o poder real seria exercido dentro de um quadro constitucional. Era preciso que o povo conservasse ou reencontrasse sua confiança no rei, mas, quando este aparecia em público, nem sempre dava as melhores garantias de amor pela nova nação. Por exemplo, durante a grandiosa festa da Federação, em 14 de julho de 1790, houve um momento em que o rei pareceu cochilar... Assim, até mesmo certos partidários de um poder real forte, como o conde de Montlosier, que deixou memórias notáveis, estavam convencidos da necessidade de sua presença em Paris. Em fevereiro de 1791, um decreto proibiu ao rei se afastar da Assembleia Nacional.

JUNTAR-SE À LEGIÃO DOS EMIGRADOS

Luís XVI vivia com um séquito numeroso nas Tulherias: seus guardas suíços e uma corte, na qual não eram poucos os aristocratas infinitamente devotados ao rei da França e desolados com a atual situação do monarca, como Breteuil ou Bonneuil. Também ali estava Axel de Fersen, aristocrata sueco cuja proximidade com a rainha era objeto de numerosas especulações. Mesmo fora da corte, havia todo um aparelho político que deplorava o fim da monarquia de direito divino: Les Actes des Apôtres (Os Atos dos Apóstolos), de Antoine de Rivarol, ou L’Ami du Roi (O Amigo do Rei), do abade Royou, por exemplo, eram periódicos muito lidos. No estrangeiro, nas províncias, em Paris e na própria corte, existiam forças importantes que encorajavam a família real a optar pela fuga, considerada salutar para a monarquia absoluta.

Muitos membros da família real e nobres próximos já haviam tomado o caminho da emigração desde o verão de 1789: o mais novo dos irmãos de Luís XVI, Carlos de Artois (o futuro Carlos X), e Adelaide e Vitória, tias do rei, inclusive. Por sua vez, Luís de Provença (o futuro Luís XVIII), também irmão do rei, preparava em segredo a própria partida.

A corte das Tulherias era o lugar das camarilhas, dos complôs, dos rumores mais diversos desde o retorno do rei. Honoré-Gabriel Riqueti, conde de Mirabeau, “o orador do povo”, que havia se tornado um dos conselheiros ocultos mais próximos de Luís XVI, faleceu em abril de 1791. Os chefes das diferentes facções moderadas ou “monarquizantes” da Assembleia Nacional Constituinte lutavam entre si para substituí-lo.

A HIPÓTESE DE SEQUESTRO

Uma ativa correspondência ligava as Tulherias às capitais da Europa, de onde Calonne e Molleville conseguiram constituir redes de recursos financeiros e políticos. Seguiram-se peripécias quase inacreditáveis: em fevereiro de 1791, por exemplo, foram capturadas armas pela polícia e uma “conspiração dos cavaleiros do punhal” foi denunciada com enorme alarde pela imprensa patriótica. Nas Tulherias, ocorreram confrontos entre a Guarda Nacional e um punhado de nobres nostálgicos, que supostamente queriam sequestrar o rei.

Em abril de 1791, Luís XVI quis viajar para celebrar a Páscoa em Saint-Cloud junto a um padre contrário à recém-aprovada Constituição Civil do Clero. Com isso, o soberano manifestava claramente uma oposição categórica a uma lei da nação. Total inabilidade: o cortejo foi detido pela Guarda Nacional e reconduzido ao ponto de partida. Também houve suspeitas de que o rei queria aproveitar esse pretexto para fugir de Paris, como haviam feito, pouco antes, suas tias. Os dois episódios, hoje, parecem anedóticos. Mas contribuíram para reforçar, ao mesmo tempo, o desejo de Luís XVI de deixar a capital e a vigilância dos revolucionários. Axel de Fersen e Maria Antonieta conseguiram convencê-lo. O empreendimento, planejado desde 1790, foi cuidadosamente preparado a partir do mês de abril – compra de uma berlinda (carruagem leve de quatro rodas) e de um cabriolé (carruagem leve de duas rodas), reparação da partida, do trajeto, dos postos de troca, identidades, disfarces... Trocou-se correspondência com Bouillé, um fiel partidário do rei que comandava os exércitos do leste, e obtiveram-se salvo-condutos para as falsas identidades.

UMA ATMOSFERA DE BAILE A FANTASIA

Havia em tudo aquilo uma atmosfera de baile à fantasia e de aventura. A sra. de Tourzel (a governanta de Luís e de Maria Teresa, filhos do casal real) seria a “baronesa de Korff ”, que estaria viajando com suas duas filhas (o delfim estava disfarçado como menina), a governanta deles, Maria Antonieta, seu intendente, Luís XVI, e sua dama de companhia, Élisabeth, irmã do rei. Quanto às duas damas de quarto da rainha, as sras. Brunier e Neuville, elas viajariam num cabriolé e encontrariam sua senhora em Claye-Souilly. Em 20 de junho, a família real saiu das Tulherias por volta da meia-noite e chegou à barreira de La Villette pouco antes das 2 horas. Ali, eles embarcaram numa berlinda (de cor amarelo- limão, as cores do príncipe de Condé, totalmente adequadas a uma operação discreta!) conduzida por três cocheiros que vestiam libré.

BOATOS ACOMPANHAM A COMITIVA

O rei, em seu papel de Durand, o intendente, instalou-se no lado direito da carruagem, o mais importante. Assim, ele era visível por todos. Fersen acompanhou a berlinda até o primeiro posto de troca, em Bondy, e depois seguiu para o norte para se juntar ao marquês de Bouillé, que estava encarregado de colocar escoltas fiéis nos outros três postos de troca. Dois problemas se colocaram muito rapidamente, além dos atrasos que se acumulavam (já de três horas no primeiro posto). Testemunhas começaram a se perguntar se aquele não era o rei. Foi o caso de François Picard, dono de um albergue em Vieils-Maisons. Luís XVI foi reconhecido por numerosas pessoas.

Ainda mais grave: algumas tropas encarregadas de escoltar o cortejo real causaram inquietação entre os habitantes locais, que se agruparam e investiram contra elas. Em Pont-de-Somme-Vesles, ou ainda em Sainte-Ménehould, os soldados bateram em retirada ou tiveram de negociar com os camponeses. Justamente em Sainte-Ménehould, o responsável pelo posto de troca, Jean-Baptiste Drouet, foi enviado pela municipalidade em perseguição à berlinda, que havia passado pouco antes das 20 horas. Drouet julgava haver reconhecido a rainha e não o rei, mas os boatos levaram a municipalidade a enviá-lo: ele era um reconhecido patriota.

Chegando a Varennes antes das 23 horas, a berlinda se deteve: buscava-se o posto de troca e, sobretudo, havia inquietação pelo fato de o veículo não ter sido escoltado por tropa alguma: os dragões postados em Clermont-en-Argonne haviam deixado passar a comitiva em vez de acompanhá-la. Drouet ultrapassou a berlinda e convenceu o procurador da municipalidade de que seria preciso impedir o cortejo de prosseguir. Foi erguida uma barricada; a Guarda Nacional de Varennes foi mobilizada. Dada a ausência de qualquer coordenação das tropas que deviam assegurar sua proteção, diante da ausência de qualquer intervenção dos homens que estavam sediados mais a leste, sob o comando do marquês de Bouillé, a tentativa de evasão fracassou pura e simplesmente – e, com o seu fracasso, desapareceram as esperanças depositadas numa monarquia constitucional.

A DECLARAÇÃO QUE TRAIU O SOBERANO

Em Paris, desde a descoberta da partida do rei, houve duas reações. As instituições, a Assembleia Nacional e o governo rapidamente difundiram a tese de um sequestro do rei, o que permitiria ao mesmo tempo não questionar a Constituição à beira da conclusão e decretar a prisão da comitiva. Foi uma escolha deliberadamente enganosa, uma vez que Luís XVI havia deixado uma “declaração a todos os franceses”, na qual assumia e justificava a fuga – La Fayette, oportunamente, decidiu censurar o texto. Foram enviados correios por todo o país para que fosse presa a comitiva real.

A reação popular, estimulada pelos clubes mais radicais e a imprensa patriótica, foi a cólera e a reivindicação da República, formulada nos Cordeliers desde 21 de junho. Tal rapidez explica-se também pela precocidade das informações. Marat, por exemplo, soube por informantes a serviço de Maria Antonieta que a fuga era iminente e a denunciou já na manhã de 20 de junho em seu jornal. Imagens do rei foram destruídas em Paris. A França despertou pela primeira vez sem um soberano. A fuga confirmou os temores dos patriotas radicais: confiar em Luís XVI era um erro. A tentativa de evasão abriu as portas para as teses republicanas.

Em Varennes, a noite ainda não havia terminado. Em Sauce, onde a família real admitiu sua identidade, o rei comeu, aparentemente indiferente a seu destino. Sucederam-se as visitas dos representantes das autoridades locais, da Guarda Nacional e depois da Assembleia, que chegaram por volta das 7 horas e organizaram a viagem de retorno a Paris. Esta foi feita na mesma berlinda, mas dessa vez com o enquadramento de uma multidão imensa de camponeses e de guardas nacionais, o que destruiu qualquer esperança de intervenção dos oficiais encarregados de acompanhar o rei para a liberdade.

O cortejo avançou lentamente. Na noite de 22 de junho, o conde de Dampierre, nobre detestado pelos camponeses, aproximou-se da comitiva para apresentar seus respeitos ao rei. Ele tentou afastar a escolta a golpes, com o lado cego do sabre. A multidão precipitou-se sobre ele e o fez em pedaços. Sua cabeça foi colocada sobre uma lança para abrir o que, a partir daquele momento, parecia a procissão de morte da monarquia. Em 23 de junho, três deputados da Assembleia, Pétion, Barnave e La Tour-Maubourg, ocuparam lugares na berlinda. Pétion, o mais radical, teria sido até mesmo atrevido com Maria Antonieta.

Esse retorno de Varennes assinalou o fi m da monarquia constitucional. A comitiva chegou às Tulherias em 26 de junho – onde Maria Antonieta escapou por pouco de ser gravemente ferida. Apesar dos esforços de propaganda dos “constitucionais” – os quais quiseram fazer crer que o cortejo em Paris havia sido acompanhado apenas pelo silêncio pesado de uma multidão grave e triste –, são numerosas as fontes dando testemunho da raiva evidente e manifestada para com o rei e a monarquia. Entre os moderados, os constitucionais e os monarquistas, que dominavam a Assembleia, e o povo parisiense, a fuga para Varennes abriu uma ruptura que iria se revelar sem retorno.


Fonte:http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/especial_revolucao_francesa_varennes_um_erro_fatal.html
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