Para Vieira, a escravidão era aceitável se os escravos tivessem tempo para se converter, mas a produção no engenho não podia ser sacrificada
Sezinando Luiz Menezes
Na América Portuguesa quase não existiam escritores, leitores ou livros. Nesse ambiente, o sermão, escrito para ser lido, pregado do alto de um púlpito no interior de uma igreja, tinha grande importância.
Ao ser humano do presente é difícil dimensionar o significado da fé religiosa no século XVII. No mundo português acreditava-se firmemente na interferência divina no reino material. Deus era uma realidade temível e amada. Onipresente e onisciente, participava do cotidiano, determinava acontecimentos, punia ou recompensava homens e mulheres. E o padre era o intérprete dos escritos sagrados, que buscava a compreensão das ocorrências naturais e humanas à luz desses textos.
A escravidão seria um tema incontornável para qualquer pregador que se deparasse com aquele público. Como explicá-la e justificá-la, tanto para escravos quanto para senhores?
Antônio Vieira chegou ao Brasil ainda menino e desde cedo pôde observar a vida dos escravos africanos nos engenhos do Recôncavo baiano. É provável que ainda antes de vir para a América ele tenha visto escravos africanos que, desde meados do século XV, trabalhavam em Lisboa. Claro que as condições dos escravos na América eram distintas. Aqui, o trabalho nos engenhos tornava a vida um inferno, um “doce inferno”, como ele definiria.
No Brasil, cabia ao proprietário possibilitar aos escravos o acesso às práticas religiosas. Para tanto, os senhores deveriam construir em seus engenhos uma capela e contratar um padre para rezar a missa aos domingos. Mas nem sempre o faziam. A expansão da fé cristã não estava em contradição com os interesses materiais. O sucesso econômico era visto como reconhecimento divino das ações realizadas. Havia, portanto, uma complementariedade entre a dilatação da fé, os ganhos materiais dos colonizadores e a expansão imperial do reino português. Além da profunda religiosidade característica da época, havia o compromisso assumido pela Coroa portuguesa junto à Santa Sé – o padroado – pelo qual o rei e a Igreja Romana se transformavam em parceiros na expansão ultramarina. O papa legitimava a expansão marítima e colonial e, em troca, o rei se tornava patrono da Igreja Católica em seus domínios e nos territórios recém-conquistados.
Por volta de 1633, ainda antes de ser ordenado, Vieira pregou seus primeiros sermões. Subiu ao púlpito pela primeira vez na Bahia e, para pregar o Sermão Décimo Quarto para uma irmandade de escravos de um engenho, elegeu como tema central a escravidão do africano. Para um público formado em sua maioria por escravos, mas também por seus senhores e por trabalhadores livres, o orador se propôs a analisar e explicar as razões da condição de existência daqueles homens. O mesmo tema seria retomado nos sermões Vigésimo e Vigésimo Sétimo, que fazem parte dos “Sermões do Rosário” e foram pregados, ao que tudo indica, naquele mesmo ano. Vieira mostra a violência, a dor e o sofrimento provocados pelo processo que transforma um homem livre em escravo. A captura na África (realizada por outros africanos que iriam trocá-lo por mercadorias trazidas nos porões dos navios dos comerciantes europeus), o translado pelo Atlântico e a venda no Brasil são considerados um “trato desumano” e uma “mercancia diabólica”. Ao falar sobre a vida no Brasil, ele ressalta a desigualdade entre os escravos “despidos e nus”, “perecendo a fome”, miseráveis, e os senhores bem vestidos, bem alimentados e ricos. A exposição adquire cores mais fortes quando o jesuíta descreve o trabalho nos engenhos. Sua narrativa conduz o ouvinte a visualizar o engenho como um ambiente terrível, pois “não poderá duvidar, ainda que tenha visto etnas e vesúvios, que é uma semelhança de Inferno”.
Gravura do processo de cozedura do açúcar. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Apesar de retratar os horrores e a violência da escravidão, Vieira não chega a questionar a existência do trabalho escravo. Em vez disso, busca explicar aos africanos que o ouvem por que Deus lhes reservou tamanho sofrimento. Em suas palavras, assim como o fogo queima mas ilumina, o tráfico e a escravidão significam sujeição e sofrimento corporal, mas podem ser o instrumento de Deus para salvar a alma de milhares de africanos. Como um típico pensador da era escravista, Vieira não considera o escravo como coisa, um ser completamente desumanizado. Esse conceito seria construído mais tarde, pelos abolicionistas dos séculos XVIII e XIX. No plano espiritual e moral, o escravo continua sendo homem. O que o diferencia de seu senhor é sua condição civil e socioeconômica. Mesmo com a sujeição do corpo, o escravo ainda é portador do livre arbítrio, portanto, capaz de fazer a escolha entre o bem e o mal, entre o vício e a virtude.
O tráfico e a escravidão eram considerados legítimos porque representavam a possibilidade da liberdade eterna para essa parcela de africanos transplantados para a América. Aqui eles conheceriam a palavra, os ensinamentos e o exemplo de Cristo. Mas a liberdade eterna não era, para Vieira, uma contrapartida imediata da condição de escravo. A salvação dependia do exercício efetivo da fé e da submissão ao senhor. É dessa perspectiva que o orador critica os proprietários que não concedem aos escravos tempo para as obrigações religiosas. Era a cristianização dos escravos que daria legitimidade ao tráfico e à escravidão.
Se, por um lado, os interesses materiais dos senhores não podiam impedir o acesso dos escravos à doutrina cristã, por outro, a doutrina também precisava adequar-se às necessidades do trabalho. Por isso Vieira critica não apenas os “excessos” dos senhores, mas também os escravos que, em decorrência do trabalho, deixam de fazer suas orações. E propõe que, em vez de rezar todo o Rosário, os escravos rezem apenas um terço. A “liberdade espiritual” dos escravos estava, portanto, subordinada ao trabalho. O exercício da fé não podia se sobrepor à atividade produtiva.
Este era um desafio argumentativo para o jesuíta: se a escravidão é legitimada pela possibilidade da conversão, como poderia o trabalho ser mais importante que a oração? Para Vieira, Portugal havia sido escolhido por Deus para universalizar o cristianismo e estabelecer o Quinto Império do mundo, previsto no livro de Daniel. A realização dessa profecia exigia da Coroa portuguesa recursos materiais e, por isso, a produção nos engenhos não podia diminuir. Somente assim a conversão do gentio e o combate aos infiéis avançariam rumo ao estabelecimento do império de Deus na Terra, que teria nos portugueses os seus realizadores.
Em julho de 1691, aos 83 anos, em carta escrita do Brasil a Roque Monteiro de Paim, importante personagem da Corte portuguesa, Antônio Vieira mostra sua preocupação com o Quilombo de Palmares. Relata que um padre teria se oferecido para ir ao quilombo negociar com os rebelados, pois, ao fugirem, os escravos passavam a viver em pecado. Os jesuítas consideraram o oferecimento inócuo e a negociação com os moradores dos Palmares “impossível e inútil”. Segundo Vieira, os escravos rebelados deixavam de cumprir suas obrigações religiosas e, para serem perdoados e receberem a “graça de Deus”, deveriam voltar a servir e a obedecer aos seus proprietários.
Como estava evidente que os fugitivos não aceitariam voltar ao cativeiro, o único meio eficaz para convencê-los a retomar a fé cristã seria que o rei e seus proprietários lhes concedessem liberdade. A partir de então, os padres poderiam doutriná-los. Para Vieira, também esta solução era inadmissível. Seria “a total destruição do Brasil”, pois “conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido o ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho seriam logo outros tantos Palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro mais que o próprio corpo”.
Aceitar a existência do Quilombo de Palmares equivaleria a aceitar a liberdade dos escravos. Essa liberdade conduziria à destruição socioeconômica do Brasil. E, com ela, ruiria o sonhado Quinto Império de Vieira.
Sezinando Luiz Menezes é professor da Universidade Estadual de Maringá e autor de Padre Antonio Vieira, a cruz e a espada (Eduem, 2000).
Saiba mais
AZEVEDO, Silvia Maria & RIBEIRO, Vanessa Costa (orgs.). Vieira vida e palavra. São Paulo: Loyola, 2008.
PÉCORA, Alcir. Teatro do sacramento. São Paulo/Campinas: Edusp/Unicamp, 2008.
VIEIRA, Antônio. Essencial Padre Antônio Vieira. Organização e introdução de Alfredo Bosi. São Paulo: Penguin Classics/ Companhia das Letras, 2011.
3.3.15
Só a fé liberta
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/so-a-fe-liberta
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