Escrito por Mylton Severiano e Kátia Reinisch
Condimento, alimento e remédio. Estimulante. “Companheira sem rival”, disse Cascudo. A pimenta, de ardente sabor, agrada gente de toda classe. E, na época dos descobrimentos, interferiu na geopolítica do mundo e pôs Portugal no centro do cenário europeu.
Há dezesseis séculos, no ano 408 da nossa era, o rei dos visigodos, Alarico, venceu os romanos e, dentre outros tributos de guerra, lhes impôs um bem pesado. Prata? Ouro? Não: pimenta! Três mil quilos de pimenta. Vale a pena conhecer a história da frutinha pela qual reis, sultões e outros potentados foram capazes de arrostar céus, terras e mares.
Desde a mais remota antiguidade, era a pimenta que figurava no topo das famosas especiarias que a Europa importava do Oriente. Longa, vermelha, ashanti, mas principalmente a malagueta, a redonda-branca e a redonda-negra – estas duas por nós conhecidas como pimentas-do-reino.
O maior centro produtor era a Costa de Malabar, no sudoeste da Índia. Sua pimenta já chegava em larga escala à Europa no século 7. Santo Antonino (1389-1450), referindo-se à introdução do cristianismo naquela região indiana, conta que todo ano vinha de lá precioso presente para o papa: um carregamento de pimenta.
A especiaria saía da costa de Malabar rumo ao Mar Vermelho em galeras egípcias e fenícias, depois em veleiros árabes, os dahws. Descarregada em portos africanos, seguia em cáfilas – as caravanas de camelos – até o rio Nilo; e, navegando para o norte, ancorava em Alexandria. Nesse porto egípcio do Mediterrâneo, operavam corretores italianos e bizantinos que encaminhavam as cargas para Gênova, Veneza e Constantinopla – maiores centros distribuidores para toda a Europa.
Mas a pimenta, por seu valor, iria mexer até com a geopolítica da época. Pois o povo português, que revolucionaria a arte da navegação, não permaneceria para sempre à mercê dos “pedágios” cobrados pelos atravessadores. Um desses, rajá de Travancore, a quem cronistas portugueses chamavam de Rei da Pimenta. Nem uma arrobazinha deixava seus domínios sem pagar imposto. Outro, sultão do Egito, cobrava 1 ducado para permitir o embarque de cada bahal (cerca de 300 quilos). E cadabahal chegava à Europa por 100 ducados.
Então, no início do século 16, com suas caravelas, última palavra em matéria de tecnologia naval, os portugueses se lançam ao além-mar, desviando o comércio da via mediterrânea para a via atlântica. Lisboa se tornaria o novo centro comercial das especiarias, particularmente a pimenta, que, no dizer do cronista Gaspar Correia, é o “lume dos olhos de Portugal”.
Três famílias fogosas e provocantes
As mais de cem espécies pertencem a três famílias botânicas – as espécies marcadas com * são nativas do Brasil. Piperáceas: pimenta-do-reino, do-mato*, dos-índios*. Solanáceas: malagueta*, cumari*, caiena ou dedo-de-moça*, pimenta-de-cheiro*. Anonáceas: pimentas da-guiné, dos-negros, de-bugre*, do-sertão*.
A aromática pimenta-do-reino, nativa das Índias, amplamente cultivada no Pará, é o condimento mais usado no mundo, seja para dar sabor aos alimentos, seja para conservá-los. Seu nome científico é Piper nigrum.
Mas, seja de que família for, o que é que a pimenta tem que há milênios nos cativa? A culpa é da capsaicina, seu princípio ativo, que lhe confere o ardor e as propriedades benéficas: cicatriza feridas, combate dores de cabeça e tumores; melhora o humor; nos mantém cheios de vitalidade e disposição sexual.
Assim falou o cientista Pereira Barreto
“As nossa pimenta malagueta, que é a alma do vatapá baiano, constitui um condimento anódino de suprema eficácia como estimulante das glândulas de pepsina, para fazê-las derramar no estômago copioso suco gástrico e assim produzir uma ativa digestão. A pimenta malagueta, associada ao limão galego, é um excelente tópico para as inflamações da garganta, tão comuns entre nós. Podemos subscrever sem hesitação tudo quanto os baianos referem a favor da nossa inquitaya [malagueta e sal].”
Assim falou o folclorista Câmara Cascudo
“O condimento incomparável para o brasileiro é a pimenta, a pimentinha, companheira sem rival, transformando o peixe cozido em obra-prima, ressaltando os valores sápidos de todas as iguarias, aceleradora digestiva, masculinizando o sabor. ‘A malagueta esmagada simplesmente no vinagre é o prato permanente e de rigor para o brasileiro de todas as classes’, escrevia Debret entre 1816 e 1831, em Viagem Pitoresca e História do Brasil.”
Fonte: