Canterbury e Calvino assinalam as mudanças do lugar que o trabalho assumiria na Europa.
Na compreensão dos fenômenos históricos, é de grande importância que as transformações sejam vistas como grandes meios de compreensão das características que diferem um contexto dos demais. Dessa forma, cabe ao professor viabilizar esse verdadeiro “passeio pelos séculos”, que permite aos alunos compreender que uma determinada forma de enxergar o mundo pode se modificar de acordo com o contexto trabalhado.
Ao estudar o desenvolvimento do protestantismo, muitos alunos ficam atentos ao processo de relativização dos dogmas católicos. Contudo, não se restringindo a um mero ataque às instituições católicas, o professor pode demonstrar que as crenças protestantes também trouxeram consigo novas formas de se ver o mundo. Nesse sentido, um curioso trabalho comparativo pode ser feito na compreensão do lugar que o trabalho veio ocupar nas óticas católica e calvinista.
Para tanto, sugerimos um primeiro trabalho com o depoimento do bispo Eadmer de Canterbury (1060 - 1124). Ao tratar do lugar ocupado pelo trabalho, o clérigo católico chegou à seguinte conclusão:
“A razão (de ser) dos carneiros é fornecer leite e lã; a dos bois é lavrar a terra; e a dos cães é defender os carneiros e os bois dos ataques dos lobos. Se cada uma destas espécies de animais cumprir a sua missão, Deus protegê-la-á. Deste modo, fez ordens, que instituiu em vista das diversas missões a realizar neste mundo (...). Instituiu os camponeses para que eles, como fazem os bois com o seu trabalho, assegurassem a sua própria subsistência e a dos outros”
Nesse documento, percebemos que a obtenção de riquezas a serem consumidas fica estritamente reclusa à figura do camponês. Sob tal aspecto, ele nada mais cumpre do que uma vontade divina que o orienta àquele tipo de função. O trabalho com a terra, apesar de suas penúrias e degradações, nada mais exprime do que a maneira que Deus pretendia estabelecer a harmonia do mundo. Nessa perspectiva, o trabalho era o meio de obter aquilo que era necessário para a sobrevivência dos homens.
Observando esse documento, temos que o clérigo relaciona o trabalho como uma simples consequência do desígnio divino. Assim como os animais exprimem certas habilidades, o homem se coloca como destinado a cumprir determinadas tarefas que garantem a sustentação da vida. Paralelamente, o texto frisa que o trabalho não pode ter outro fim que não fosse a estrita garantia da subsistência dos membros daquela sociedade.
Deslocando-se para outro contexto, percebemos que esse tipo de função subsistente atrelada ao trabalho do camponês ganha outros significados no interior do discurso calvinista. Tomando como referência os princípios de João Calvino (1509 - 1564), observamos a seguinte compreensão:
“Deus chama cada um para uma vocação particular cujo objetivo é a glorificação dele mesmo. O comerciante que busca o lucro, pelas qualidades que o sucesso econômico exige: o trabalho, a sobriedade, a ordem, responde também ao chamado de Deus, santificando de seu lado o mundo pelo esforço, e sua ação é santa.”
Nesse segundo momento, observamos que a preocupação central com o trabalho se manifesta na figura de outro agente econômico: o comerciante. Além disso, abandonando os princípios de subsistência outrora valorizados, esse mesmo documento integra à atividade desse personagem a capacidade de acúmulo (lucro) como uma função inerente ao seu ofício e igualmente prestigiada pelo suposto julgamento estipulado por Deus.
Contrapondo estes dois documentos, o professor tem plenas condições de indicar o lugar que o trabalho passa a ocupar na ótica calvinista. Paralelamente, o trabalho com os dois textos ainda indicam uma profunda transformação no cenário econômico europeu. A partir de então, não só o trabalho do camponês, mas as negociações do comerciante formaram um quadro econômico mais diversificado. Sem dúvida, ficam grifadas as novas feições assumidas pelo mundo moderno.
Por Rainer Sousa
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